Sérgio Tavares indica Murilo Rubião

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Muitos escritores brasileiros contemporâneos citam Cortázar e Borges como autores de formação, sendo que há um compatriota que manipula tão bem, ou melhor, essa argamassa chamada de realismo fantástico.
– afirma Sérgio Tavares sobre seu indicado, o escritor Murilo Rubião.

Sérgio Tavares estreou na literatura em 2010 com o livro Cavala, obra que lhe rendeu o Prêmio Sesc de Literatura, em 2009, na categoria contos. Em 2012, publicou um novo livro de contos, pela editora Confraria do Vento, chamado Queda da própria altura.

Já Murilo Rubião, o autor indicado, teve seus contos escritos entre os anos de 1940 e 1960, sendo que em 1970 alcançou certo sucesso. Sua obra remete ao universo kafkaniano, mesmo sem que ele conhecesse o autor austro-húngaro. Como o próprio Sérgio Tavares destacou na entrevista, “existe uma tremenda confusão quando comparam a ficção de Rubião com a dos escritores que encabeçaram o movimento que ficou conhecido como o ‘boom da literatura hispano-americana’”. Ao longo da vida, Rubião publicou apenas trinta e três contos, o suficiente para receber de Carlos Drummond de Andrade o seguinte comentário: “Ele nos transporta para além de nossos limites, sem entretanto jamais perder pé no real e no cotidiano”.

Mas o melhor é saber direto de Sérgio Tavares o que ele pensa sobre Murilo Rubião:

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Murilo Rubião, um ilustre desconhecido? Por que a escolha, Sergio?
ST:
Meu primeiro contato com um conto do Rubião foi através da antologia de narrativas fantásticas Os buracos da máscara, lançada nos anos 80. Eu entrava na adolescência, uma fase em que praticamente só me debruçava sobre um tipo de literatura que envolvia aspectos do horror e do sobrenatural, e, por conta disso, comprei a coletânea num sebo. Ali, em meio a curtas histórias de Poe, Maupassant e Hoffman, estava O ex-mágico da Taberna Minhota, um dos melhores contos do Rubião. Anos depois, fui trabalhar como assessor de imprensa num órgão público e, no convívio diário com pessoas contaminadas pela burocracia, me ocorreu uma frase emblemática desse conto: “Ser funcionário público é suicidar-se aos poucos”. Voltei ao Rubião, então mais maduro, e sua ficção me acertou em cheio. Curioso é que foi ele que me levou a autores hispano-americanos que alicerçam o chamado realismo mágico, com os quais estabeleço uma leitura afetiva. Rubião é uma influência constante, certamente um dos pilares da minha formação como escritor. Não o considero um ilustre desconhecido, mas um autor que não goza do devido reconhecimento na literatura brasileira.

Interessante você trazer à tona a relação dele com o Realismo Mágico. Digo isso, pois, segundo me parece, há uma resistência dos críticos no Brasil com este tipo de literatura, até mesmo qualificando-a como um “gênero menor”. Enquanto isso, nossos vizinhos hispano-americanos levaram dois prêmios Nobel de Literatura, escrevendo neste gênero. Em sua opinião, a que se deve esta resistência? Ou você entende a situação de forma diferente?
ST:
É fundamental trazer isso à tona, pois existe uma tremenda confusão quando comparam a ficção de Rubião com a dos escritores que encabeçaram o movimento que ficou conhecido como o “boom da literatura hispano-americana”. Sua primeira seleta de contos, O ex-mágico, saiu na segunda metade da década de 40, enquanto o fenômeno editorial que trouxe reconhecimento internacional a autores como Córtazar, Onetti e García Márquez ocorreu vinte anos depois. Como relata o jornalista Humberto Werneck, que conviveu com Rubião, no prefácio da antologia reeditada pela Companhia das Letras, as principais influências de Rubião eram Machado de Assis e a Bíblia. Isso põe abaixo essa impressão de que o escritor brasileiro seguia o rastro dos hispanos. Rubião era, acima de tudo, resistente e perfeccionista; o conto O convidado levou mais de vinte anos para ser finalizado. Custeava a impressão de seus livros e saia às ruas em busca de leitores. Não acredito que o extrato da sua ficção seja motivo de resistência. O caso é que a bibliografia de Rubião é constituída unicamente de contos. Talvez o gênero escolhido tenha sido o principal motivo para a falta de reconhecimento, essa pecha que o mercado editorial atribui aos contistas por excelência.

Às vezes, brinco que “somos todos filhos de Machado”. Ele é como um patriarca da literatura brasileira. Não que não houvesse outros grandes antes, mas Machado deu um novo rumo à nossa literatura. Algo interessante é que ele fazia também muitas referências à Bíblia. E você nos contou que o Rubião seguia o mesmo caminho. Como são estas referências na obra do autor mineiro, de estrutura, de estilo?
ST:
Rubião tinha por costume assinar seus contos com epígrafes retiradas da Bíblia, usando-as como uma espécie de guia para a narrativa, uma maneira de contextualizar a história por acontecer. Tome, por exemplo, o caso de Alfredo, em que uma espécie de criatura ronda um casebre, erigindo, pouco a pouco, uma atmosfera de tensão, até se desvendar que o animal com a compleição “desajeitada de um dromedário” era, de fato, o irmão do narrador em busca de uma reaproximação familiar, um tipo de redenção. Antes desse conto, vem o seguinte fragmento: “Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó”, que trata da procura pela benção sagrada. Rubião urdia sua ficção numa tessitura de metáforas, assim como recorria a paralelos. Sendo assim, era forçado a burilar às rédeas da excelência sua prosa, perseverar numa espécie de carpintaria até chegar ao resultado final mais polido, mais cintilante. Por isso, quando o fantástico, o absurdo se infiltra na ordenação dos seres e das coisas mais ordinárias, o que geralmente acontece é uma guinada melancólica e, até certo ponto, desventurada em relação à vida. O lirismo presente não permite fragmentações bruscas, baques; a densidade é tamanha que o efeito mágico é absorvido de maneira paulatina.

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Murilo Rubião escrevendo

As histórias se alimentarem da burocracia do cotidiano tem sido recorrente na literatura. Sabemos que quando o Rubião apareceu surgiram comparações com Kafka. Como o autor austro-húngaro é mais conhecido, você poderia estabelecer algumas relações para esclarecer ao leitor quem é Murilo Rubião em sua produção literária?
ST:
Eu tomei a mão do Rubião quando comecei a escrever meu segundo livro, Queda da própria altura. Ali estão histórias que atravessam um luto pessoal e eu precisava de referências para não me perder totalmente nessa empreitada. Rubião esteve ao meu lado, e há menções e homenagens aos contos dele por toda a parte. Hera, por exemplo, toma emprestado o fenômeno que acomete o personagem do conto O homem do boné cinzento; inclusive o nome deste personagem batiza o porquinho-da-índia do narrador da minha narrativa. Já Umbrais encampa a dinâmica do conto A armadilha. O triste é que apenas alguns críticos notaram esse acordo. Quanto à comparação com Kafka, como conta Werneck, Rubião só conheceu a obra do escritor austro-húngaro já com sua ficção formada. A semelhança, acredito, vem da exaltação do absurdo no funcionalismo público.

Não sei se foi intencional, mas seu livro se chama Queda da própria altura, e você acabou de dizer que “precisava de referências para não me perder totalmente”. Como é esta etapa de produção de um livro, alicerçando as referências, mas construindo sua própria obra?
ST:
Eu tinha essa coisa bruta inicial, essas tantas páginas de um cruzamento de testemunho e retratação que, mais tarde, seriam editadas no conto Sono, que passou a ser o núcleo do livro. O que há de verdadeiro nessas histórias, o que pode se aproximar de mais fidedigno do acontecimento me motivou a escrevê-las está ali. Contudo eu não podia resumir toda a história a esse fato incontornável, eu era atacado por tantos sentimentos que precisava incidi-los em outras narrativas. Então fui atrás de referências literárias, pois não queria fazer um relato empírico, era um momento tão pavoroso e dolorido que somente através da ficção eu seria capaz de revisitá-lo, a fim de eternizar esse filho que a vida me tirou. Eu gosto da ideia de que um escritor é uma síntese de tantos outros, portanto recorri a um gênero caro, o realismo fantástico, e, por conseguinte, os contos do Rubião. O realismo fantástico é tomado por uma atmosfera onírica e, intimamente, queria entender que tudo foi assim, um sonho ruim. No livro, e apenas na literatura, isso seria possível.

Sergio, me diga uma coisa, para finalizar sua exposição de Murilo Rubião, por qual livro do autor você indica que o público comece a lê-lo?
ST:
Rubião tem sua produção constituída unicamente por contos, ao todo são trinta e três. Todos eles foram reunidos numa edição de bolso, pela Companhia das Letras (Obra Completa), com um preço bem acessível. Para quem ainda não o conhece, esse é o caminho elementar. Quanto às narrativas, não há início mais estimulante do que Teleco, o coelhinho, para mim, o melhor conto da literatura brasileira.

Mais alguma coisa a acrescentar sobre Murilo Rubião?
ST:
O que posso fazer a mais, como fã de Rubião, é recomendar entusiasticamente a leitura de seus contos. Muitos escritores brasileiros contemporâneos citam Cortázar e Borges como autores de formação, sendo que há um compatriota que manipula tão bem, ou melhor, essa argamassa chamada de realismo fantástico. Antes de Carta a uma senhorita em Paris, outro coelho já saltitava por esse universo mágico.

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