A cultura da leitura precisa fincar

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A cultura da leitura precisa fincar

Em editorial de início de ano, nosso Editor-chefe reflete sobre a necessidade de desenvolvimento da leitura no Brasil, a partir de uma cena afegã.

Mario Filipe Cavalcanti, Editor do Homo Literatus. Foto divulgação

Na manhã de 27 de janeiro fui fisgado por uma pequena matéria em vídeo do Deutsch Welle Brasil veiculada no Instagram, intitulada “Vovó enfrenta Talibã com livros”. Nos cortes, podia-se ver uma mulher idosa perambulando pelas ruas de Cabul com uma pilha de livros nas mãos os oferecendo a transeuntes, recebendo ora “nãos” injustificados, ora explicações como “desculpe vovó, sou analfabeto e não consigo ler esses livros”, ora conseguindo vender exemplares a um ou outro afegão curioso para ler.

A reportagem relata que Gulljan – o nome da senhora dos livros – já havia sido ameaçada inúmeras vezes pelo Talibã, primeiro por estar nas ruas trabalhando – na lógica do regime, mulheres não poderiam – e em segundo por não estar vendendo livros islâmicos. Gulljan vende romances estrangeiros e não ficção e o faz para ajudar em casa e possibilitar a circulação de conhecimento.

Há uma necessidade clara para Gulljan, mas que para muitos de nós aparece em penumbra: precisamos ler mais e com mais qualidade. Se de um lado o analfabetismo é um grave problema que se espalha pelo mundo em pleno século das máquinas inteligentes, de outro lado, o analfabetismo funcional é uma realidade absurda de países como o Brasil. A pergunta sobre quantos livros se leu em um ano é, de um lado reducionista, de outro lado péssima uma vez que a maioria das pessoas não entende um só livro que lê e o problema do entendimento se estende à política, porque os cidadãos que não leem, ou que leem e não entendem, votam.

Enquanto muitos escritores consagrados prosseguem se esforçando em realizar oficinas de escrita para revelar novos escritores que estejam sob a sua batuta de influência – porque isso dá dinheiro –, o problema da leitura no país continua o mesmo: pouco se lê, quase nada se entende. Não deveríamos nos esforçar em conjunto por oficinas de leituras para a formação de bons leitores, sobretudo em parcerias com profissionais de educação básica?

Estamos entrando em um novo ciclo e a pandemia de Covid-19, que prossegue, nos dá uma perspectiva mais urgente de nossas necessidades. Ao mesmo tempo, 2022 é um ano eleitoral, momento em que os lobos se vestem de lã e tornam-se mui afáveis. A leitura, a perspectiva cultural, o olhar arguto é uma necessidade de primeira ordem no Brasil. Não estamos em guerra civil ou dominados por um regime ultraconservador terrorista que minou as instituições – embora estejamos presenciando a tentativa de implantação de um regime similar. Para além de todos esses assombros, vivemos o momento em que multibilionários e suas big techs desejam prender nossa atenção em telas coloridas de conteúdos às vezes dementes.

Gulljan e sua necessidade de vender livros, arriscando sua vida para tanto. Essa poderia ser uma cena distante, mas os problemas que ela denuncia nos são, infelizmente, muito próximos. 2022, e seu recomeço, não seria a hora de mudarmos isso?

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