Uma obra demasiadamente humana: A Bela Helena, de Miriam Mambrini

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O livro A Bela Helena, de Miriam Mambrini, é notável, metalinguístico e demasiadamente humano, pois compreende as agonias e dilemas intrínsecos a todos nós, sobretudo as cargas femininas 

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Miriam Mambrini

O novo livro de Miriam Mambrini, escritora já residente e respeitada na literatura brasileira contemporânea, é, para dizer o mínimo, inquietante. A Bela Helena (editora 7Letras, 2015) é daquelas obras que inebriam o leitor, seduzem-no, provocando o singular encantamento inerente às boas narrativas. Dividido em vários capítulos curtos, proporciona uma leitura prazerosa e abrasiva.

É pelas mãos de Talita, nossa narradora-personagem, que vamos descobrindo e desvendando a vida da mulher brasileira nascida na metade do século XX. Há inúmeras histórias simultâneas, sobrepostas, todas saindo do mesmo cerne: Talita andando na corda bamba que é 1999, a fratura entre os séculos XX e XXI, às vésperas dos seus sessenta anos. Desse presente narrativo, no qual ela escreve para reviver as lembranças do passado, brotam as diversas partes de sua vida: a infância de abandono, a romântica adolescência e a idade adulta. Esses momentos, às vezes flashes, pousam na página como quebra-cabeças, instigando o leitor a traçar uma linearidade histórica em um suposto caos.

Essa “desordem” retrata a nossa contemporaneidade: afinal, o contemporâneo se faz por meio desse constante resgate do que já se foi, das longínquas origens, das épocas transcorridas. Ao decidir contar sua vida, Talita entende o tempo como ele é – onipresente e fluido, uma malha na qual passado e presente se tocam e se encontram. É daí que surge a sua reflexão sobre o envelhecimento e o efeito do tempo nos seres humanos, focando especialmente nas mulheres: “A guerra contra o tempo é inglória, perdida de antemão” (p.66).

O próprio título do livro nos traz essa ideia da terrível obrigação de ser sempre bela, e, caso a beleza se finde, acaba também a utilidade da mulher. E que título é esse, se a narradora não tem o nome correspondente a ele? Helena é uma espécie de alter-ego, aquela personalidade com nome bonito que Talita gostaria de ser – já que nunca somos o suficiente. Os diversos fardos femininos são abordados, desde a mulher tendo que corresponder aos padrões da ditadura da beleza, que as reduz a seres de aparência, até o pudor sexual na velhice – é permitido ter libido com mais idade? Talita se mostra uma mulher nômade, sem raízes; cheia de curiosidade e com uma capacidade incrível de se adaptar, uma verdadeira camaleoa. Essa versatilidade feminina na luta diária pela sobrevivência não atinge só a protagonista, mas também todas as mulheres a sua volta: desde a mãe e a avó até as colegas de escola.

Porém, o ponto mais recorrente é o medo da velhice, dos sessenta anos que lhe batem a porta, “o corpo que entardece” (p.57). Esse é um dos impulsos que a leva para a escrita: a literatura como perpetuação humana. Em inúmeros trechos metalinguísticos do livro, a narradora transcorre sobre como escrever pode ser uma máquina do tempo, uma forma de se rejuvenescer – por meio da memória. Num desejo quase casmurro de “unir as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” (Dom Casmurro, Machado de Assis), Talita procura reviver seus dias já mortos através das lembranças, que ainda vivem.

Criança nascida “no tempo de Getúlio” e adolescente que viveu os “anos dourados”, ela vê os anos 2000 como um fim iminente, que a fará obsoleta, já que ela pertence ao velho mundo, o velho Rio. A modernização da cidade também é abordada, discutindo algumas questões muito pertinentes hoje, como o rápido desenvolvimento tecnológico, a vida virtual e as relações líquidas.

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A bela Helena (editora 7Letras, 2015)

O amor também dá suas caras: Talita se casa três vezes, mas o coração dela fica mexido de verdade por Laerte, homem que a observa de longe desde criança. Apesar de nunca terem ficado propriamente juntos, o característico dessa relação, além de uma espécie de místico encantamento, é o seu vai-e-vem, materializado nas duas epígrafes do livro: “Nada jamais continua, / Tudo vai recomeçar.” e “Antes, todos os caminhos iam, / Hoje, todos os caminhos vêm.”, ambas de Mário Quintana.

A Bela Helena é um livro notável, metalinguístico, consciente, delicado, mas acima de tudo, humano. Miriam Mambrini compreende as agonias e dilemas intrínsecos a todos nós, sobretudo as cargas femininas, aquelas tantas cruzes de carregar todos os dias. Tecendo uma narrativa que poderia ser sobre qualquer mulher, Miriam se utiliza do tempo e da memória para construir uma obra que, justamente por abordar temas e conflitos tão universais, ainda que simultaneamente particulares, se mostra atemporal.

Referência:

MAMBRINI, Miriam. A Bela Helena. Rio de Janeiro: Editora 7Letras. 2015.

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