Alguns aspectos da obra literária Leite Derramado dialogam com a literatura de Machado de Assis
Falar de Chico Buarque requer cuidado. Sua figura é uma das mais conhecidas e comentadas do Brasil, apesar do cantor, compositor e escritor evitar, via de regra, a exposição midiática. Tudo o que lança (ou fala) costuma despertar paixões, rendendo-lhe fervorosos elogios ou críticas. O propósito deste texto, no entanto, é passar longe da histeria que o cerca para analisar alguns aspectos de seu Leite Derramado e de que forma essa obra dialoga, em determinados aspectos, com a literatura de Machado de Assis – sem que seja aqui feito um juízo de valor sobre relevância da literatura de um sobre a do outro. Não se trata de comparar a importância da produção de Chico Buarque com a de Machado (que obviamente é inquestionável e certamente reconhecida pelo próprio Chico), mas apenas buscar alguns pontos de contato interessantes entre os textos.
O primeiro deles é o formato da narrativa. O narrador de Leite Derramado é Eulálio Assumpção, com o ‘p’ que se pronuncia mudo, como o próprio faz questão de explicitar. Pelo teor do comentário, enuncia-se ao leitor uma das principais características desse protagonista, que é o seu orgulho e seu senso de superioridade diante dos outros. Vindo de uma família tradicional brasileira, Eulálio é, no presente da narrativa, um velho centenário que encara os seus dias em camas de hospital, enquanto relembra de maneira confusa e saudosa elementos do seu passado. Ora, o tom de melancolia decadente que invade o discurso do narrador em primeira pessoa nos remete a uma importante personagem machadiana: o amargurado Bentinho, que no final da sua vida tenta reconstruir o seu passado feliz. De fato, assim como em Dom Casmurro, o protagonista de Leite Derramado pertence a uma elite tradicional – evocada com frequência em lembranças como:
“Meu avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo” e “brincava nos jardins do Catete com os filhos do Presidente Artur Bernardes”.
Pelos trechos, fica claro que a proposta de Chico Buarque é escancarar essa origem social do protagonista, mostrando o quanto ela moldou um caráter machista, preconceituoso e arrogante, que em nada garante a esse protagonista um envelhecimento feliz. Essa intenção é muito menos explícita em Machado, dadas as sutilezas que são marcas de seu estilo, embora seja constantemente apontada pela crítica em análises de viés sociológico.
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Trata-se de uma característica que tem peso, inclusive, no relacionamento amoroso que o romance apresenta. Matilde, a menina por quem Eulálio se apaixona e com quem se casa ainda jovem, é descrita por ele como “de pele castanha, a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai”. O desgosto sentido pela mãe do menino é evidente, e ele mesmo, ao longo da história, tenta minimizar a coloração da pele da moça, romantizando-a ao relacioná-la com um tom indígena ou árabe. Explicita-se, portanto, a tensão racial ainda presente no Brasil do século XX, que impelia as famílias tradicionais a renegar as relações com negros e mulatos. É um elemento relevante da obra, que trabalha o preconceito brasileiro tão presente até hoje, provavelmente inspirada pelos estudos que o próprio pai do autor, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, realizou a respeito.
Um segundo ponto de contato entre os dois autores reside justamente na figura da amada. Matilde é solar, sociável, cheia de vida. Segundo o narrador, aproxima-se “não em linha reta, mas em parafuso, a se entreter com meio mundo à sua volta, como se estivesse numa fila se sorveteria”; entra no mar “daquele jeito dela, como se pulasse corda”; saltita na calçada “como se jogasse amarelinha”. É “leve de espírito”, define por fim, buscando mostrar que mesmo com uma série de grosserias de sua parte, ela não guardava rancores. Considerando a estrutura da obra, em que o protagonista amargurado recorre, de novo e de novo, a lembranças obsessivas de uma amada tão vivaz, fica difícil não associá-la à figura de Capitu. As duas compartilham essa personalidade encantatória, espontânea, que marca o personagem masculino para sempre.
Da mesma forma, os ciúmes demonstrados por Eulálio não escapam ao leitor de Machado. Buscando explicar aos interlocutores o sumiço repentino de Matilde, o protagonista assume uma postura mesquinha, ligando-a, a princípio, à fuga com outro homem, seu sócio francês Dubosc. O trecho abaixo é um dos que mostra a construção desse cenário mental, explorando os ciúmes que o marido nutria pela esposa a partir de suposições sobre suas falas e atos:
“Eu já saíra de casa com Matilde na cabeça, vinha matutando que ela escondia alguma coisa de mim. Ela queria me fazer crer que, na minha ausência, Dobosc se servia do chalé puramente, como de alguma cabine em um balneário francês. Queria me convencer de que os dois nunca se esbarrariam no entra-e-sai da casa, seus olhares nunca se cruzariam em horas de banhos de sol. […] duvido que, olhando Matilde de bruços ali na areia, nunca tenha entrevisto a perspectiva de um ou outro encontro escuso em seu quarto de hotel, depois de meses pagando por mulheres gastas em bordeis ordinários”.
Na cena seguinte, ele encontra Matilde dançando não com Dubosc, mas com um criado, num momento de descontração quase infantil, e tem um acesso de ciúmes, chutando a vitrola. No entanto, logo nota a sua percepção enviesada sobre o que viu, culpando-se pela reação violenta e presenteando a mulher com um novo aparelho. Assim, ao contrário do texto de Machado, que nos deixa sempre sem a resposta final a respeito da validade dos ciúmes expressos, aqui temos uma posição clara, ressaltando que o problema se encontra na imaginação fértil do marido, e não no comportamento de Matilde. Mais do que isso, temos também uma versão definitiva para o seu desaparecimento, que Eulálio confessa com a narrativa já avançada: ela teria se internado num sanatório para morrer longe da família, acometida pela tuberculose. Um final digno e heroico, quem sabe até uma piscadela ao leitor sobre a interpretação que Chico faz da própria figura de Capitu. A sua Capitu é sim inocente, e o seu Bentinho, tão ciumento e cheio de teorias quanto o original, tem mais é que reconhecer isso no fim.
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Seriam esses aspectos uma espécie de releitura de Machado? Há indícios de uma resposta afirmativa para a questão, até porque uma das críticas que o livro recebeu foi justamente a de ser pouco original, importando elementos de outros autores, como do americano Philip Roth. De fato, há ideias utilizadas por Chico Buarque recicladas de outras obras, como o velho que analisa sua vida à beira da morte ou o romance de juventude que acaba de maneira traumática. No entanto, a habilidade narrativa do autor é notável, o que faz com que os vai e vens temporais sejam bem executados e agradáveis de se ler; isso sem contar a presença do seu famoso lirismo, que ecoa algumas de suas letras de música. Além disso, é louvável ver a história de mais de um século de Brasil ser trabalhada em tantos personagens diferentes, apontando peculiaridades que são só nossas enquanto nação, embora seja preciso uma dose de boa vontade para acreditar que tantas gerações de uma família pequena e aristocrática possam ser condensadas no curto período de cem anos.
Para os que se interessaram pelos pontos destacados, fica a recomendação da leitura. Talvez outros toques de Machado possam ser percebidos no texto a partir de novos olhares.