O Homo Literatus conversou com Érico Melo, especialista em Guimarães Rosa e um dos responsáveis pelo trabalho da nova edição lançada pela Companhia das Letras
A nova edição de Grande sertão: veredas, o livro mais lembrado de João Guimarães Rosa (1909-1966), chega às livrarias mais uma vez. Editado pela Companhia das Letras, desde do ano passado a casa vem apostando em ações de marketing para chamar atenção à obra.
Lançado em 1956, Grande sertão: veredas eternizou Riobaldo, Diadorim, o diabo no meio da rua, além, claro, de neologismos – e foi definitivo para deixar o nome de Guimarães Rosa em nossa literatura.
Um dos responsáveis pela nova edição é Érico Melo. Doutor em literatura brasileira, com pós-doutorado em literatura comparada pela USP (Universidade de São Paulo), ele é um dos mais importantes estudiosos da obra de Rosa no Brasil.
Interessado por Guimarães Rosa mesmo antes de cursar letras na USP, Melo conversou por e-mail com o Homo Literatus. Entre outros assuntos, falou sobre a nova edição e como foi o trabalho para estabelecer o texto.
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Como surgiu seu interesse em Guimarães Rosa? Comecei a estudar os livros de Rosa na faculdade de letras, na USP, no começo do século, embora já tivesse lido a maioria deles antes de entrar no curso. Em 2005 iniciei um mestrado sobre o ciclo Corpo de baile, com enfoque na geografia de suas sete novelas. O mestrado se transformou num doutorado sobre o mesmo tema, defendido em 2011. Em 2014 voltei a pesquisar sobre Rosa no pós-doutorado.
Quando, onde e como foi a primeira leitura de Grande sertão: veredas? Em algum momento da adolescência que já não recordo. O fato é que só fui compreender a grandeza e a maravilha do romance anos mais tarde, já com olhar de estudioso.
Seis décadas após a publicação do romance, há um motivo específico pelo interesse em relação à obra? Suas obras continuam a fornecer aos novos autores e leitores os padrões de uma literatura absolutamente devotada aos temas brasileiros, ao mesmo tempo que muito ligada ao alto modernismo e mesmo a clássicos como Goethe, Plotino, Descartes, Cervantes e vários outros. Citando Italo Calvino, deve-se ler e reler Rosa porque é um daqueles autores cujos livros “exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Saudemos com entusiasmo, portanto, a presente iniciativa de relançar a obra rosiana segundo padrões editoriais adequados a sua magnitude. Por outro lado, a onipresença nos textos de Rosa e de Grande sertão: veredas, com seus ambientes ecoculturais, já praticamente extintos, constitui um recado eloquente e muito atual contra sua destruição pelas forças selvagens da cidade. Depois da devastação da bacia do rio Doce, em Mariana, o crime ambiental de Brumadinho matará o Paraopeba, filho do Velho Chico – o que demonstra não se tratar de mera especulação estética. O sertão já não está em nenhuma parte, a não ser nos livros de Rosa.
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A sua função no trabalho foi a de estabelecer o texto. Como isso funciona? No caso de Grande sertão: veredas, o estabelecimento de texto concerne principalmente à restituição de sinais diacríticos e hifens que haviam sido obliterados pelas sucessivas reformas ortográficas desde a primeira publicação, e que a rigor, a meu ver, deveriam ter sido preservados, como alguns subtônicos obsoletos (“umbùzeiro”), circunflexos recentemente proibidos (“tôo”, “pipôco-paco”, “vôte”) e palavras compostas (“bem-querer”). Procurei sempre prestar atenção à invenção neológica, de modo a ressaltar a soberania onisciente de Rosa sobre a língua brasileira. O trabalho incluiu a confecção de um mapa circunstanciado das variantes entre a segunda edição de 1958, escolhida como padrão por sua rubrica “texto definitivo”, e o texto-base das edições recentes da Nova Fronteira, além da consulta a vocabulários e dicionários dos anos 1950 e 1960. Cerca de 115 palavras foram alteradas em relação à última edição da Nova Fronteira. Fora disso não se mexeu em nenhuma vírgula do texto, que deve ser preservado como o maior monumento da cultura brasileira moderna.
A nova edição de Grande sertão: veredas sai pela Companhia das Letras. Como foi o contato entre a editora e o senhor? Trabalho há mais de dez anos como freelance para a Companhia das Letras, então o contato obedeceu à mesma prática normal do fluxo de outros trabalhos: ofereceram-me por e-mail a empreitada, que topei imediatamente.
E como foi ter sido chamado para o trabalho? Na ocasião, senti que minha trajetória de estudioso da obra rosiana chegava a um de seus momentos capitais. Acho que todo rosiano adoraria ter a oportunidade de “retocar” o texto sagrado do romance como eu “retoquei” – na verdade, tratou-se de uma restauração.
Por que vale comprar a nova edição e não uma usada em um sebo? Por várias razões: o estabelecimento de texto realizado segundo criteriosa análise textual e comparativa, à maneira de uma restauração de pintura antiga; a alentada cronologia de vida e obra, que fica no limite de uma pequena biografia, com várias informações inéditas, e que pesquisei e escrevi com enorme prazer; a seção de fortuna crítica, com seis textos fundamentais para compreender Guimarães Rosa; as belas fotografias do escritor no final do volume, duas das quais totalmente inéditas em livro; e, por fim, o maravilhoso desenho gráfico e da capa da edição.
Você pesquisa Guimarães Rosas há anos – ao ponto de ter percorrido 10 mil itens do autor. O que o grande público ainda não sabe sobre ele? Guimarães Rosa permanecerá, tomara, como um enigma insolúvel na história da literatura brasileira, e esse é o principal motivo gerador de interesse no grande público e entre os especialistas. De sua biografia conhecemos muita coisa, mas aspectos centrais de sua obra – como a profunda imbricação com a geografia do Brasil – mal começaram a ser explorados. Se há 10 mil itens já catalogados de seu acervo pessoal no IEB-USP, outros 10 mil continuam à espera de quem os resgate do limbo arquivístico. Daqui a décadas, talvez séculos, os livros e arquivos de Rosa continuarão a revelar novos segredos, à maneira de outros gigantes do mesmo naipe como Joyce e Proust.