Entrevistado por François Truffaut, o diretor inglês Alfred Hitchcock respondeu por que não quis produzir uma adaptação cinematográfica do romance russo Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski
Em 1962, o diretor francês François Truffaut estava em Nova Iorque, para apresentar seu filme Jules e Jim, quando foi confrontado pela pergunta: “Por que os críticos dos Cahiers du Cinéma levam Hitchcock a sério?” Da mesma forma que seus compatriotas e diferente dos americanos, Truffaut via no diretor inglês uma espécie de guru, devido a grandes filmes como Janela Indiscreta, Quando fala o coração e Psicose. E para mostrar a face do artista, atrás do homem sucesso de bilheteria, Truffaut elaborou uma série de cerca de quinhentas perguntas para fazer a Hitchcock.
Entre elas, surgiu uma muito importante para a reflexão da transposição narrativa dos livros para o cinema.
Hitchcock tinha resistência a adaptar grandes clássicos da literatura. Seus fãs e a própria mídia questionavam por que ele preferia levar às telas apenas romances populares – o que, convenhamos, é um prato cheio para a crítica cair em cima. Portanto, Truffaut (TRUFFAUT; SCOTT, 2004, p. 73) perguntou sobre as possibilidades que Hitchcock teria ao adaptar o livro mais conhecido de Dostoiévski, e recebeu a resposta: “[…] jamais o farei porque, justamente, Crime e castigo é obra de outro. Volta e meia fala-se de cineastas que, em Hollywood, deformam a obra original. Minha intenção é não fazer isso nunca.” E o diretor inglês ainda aproveitou para dar uma “alfinetada” em quem adaptava romances de peso: “O que não entendo é que alguém se apodere totalmente de uma obra, de um bom romance que o autor levou três ou quatro anos para escrever e que é toda a vida dele. Alguém fica remexendo nisso, cercado de artesãos e técnicos de qualidade, e vira candidato ao Oscar, ao passo que o autor se dissolve no segundo plano. Não se pensa mais nele” (p. 75).
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Em 1939, mesmo ano em que Hitchcock veio para os Estados Unidos, foi lançado E o vento levou, uma adaptação do romance homônimo de Margaret Mitchell, tendo entre outros colaboradores nomes como F. Scott Fitzgerald e William Faulkner, e levando oito das catorze indicações ao Oscar que teve. Mas o grande detalhe é que o filme foi produzido por David O. Selznick, que após esta experiência de sucesso, trouxe Hitchcock para a América e quis impor que assim como acontece em E o vento levou, o diretor inglês fosse totalmente fiel às obras que adaptasse. Hitchcock discordou de Selznick e, alguns filmes depois, tornou-se seu próprio produtor.
Mas para arrematar o tema da hipotética adaptação do romance do escritor russo, Hitchcock explicou: “Se você pega um romance de Dostoiévski, não apenas Crime e castigo, qualquer um, há muitas palavras lá dentro e todas têm uma função” (p.73). Truffaut então questionou: “E por definição uma obra-prima é alguma coisa que encontrou sua forma perfeita, sua forma definitiva?”, ao que Hitchcock respondeu: “Exatamente. E para expressar a mesma coisa de modo cinematográfico, seria preciso fazer um filme que substituísse as palavras pela linguagem da câmera, durasse seis ou dez horas, do contrário não seria sério.”
Intrigante ver a opinião de um gênio sobre a obra de outro. De forma geral, surge uma visão apurada, a qual não estávamos esperando, assim como este arremate hitchcockiano. O comentário ainda abre margem para pensarmos em filmes que parecem aniquilar as histórias de seus livros de origem, cortando partes que são a essência da narrativa.
Ainda assim, eu gostaria de ter visto um Crime e Castigo adaptado por Alfred Hitchcock. Você não?
Referência:
TRUFFAUT, François; SCOTT, Helen. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. Tradução de Rosa Freire de Aguiar – São Paulo: Companhia das Letras, 2004.