O Duplo é moldado tanto pelo que um personagem gostaria de ser quanto pelo que é
Antes que começasse suas obras gigantes e Rodion Raskólnikov se tornasse marco por suas infames justificativas, Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski tinha criado um personagem tão dúbio quanto seu ex-estudante, protagonista de Crime e Castigo (1866). Seu segundo romance, publicado em 1846, nos apresenta Yákov Pietróvitch Golyádkin, protagonista de O Duplo: funcionário público condenado à burocracia e posição fixa do cargo, sempre hesitando para falar a frase mais prosaica possível, terrivelmente solitário e problemático como toda a galeria de gente torta que o Dostô criava como ninguém.
Pra não dizer que vive só, ele vive com Pietruchka, seu criado. Mas não passa disso, pois a relação entre eles é meio engessada: às vezes o nosso pobre Golyádkin é duro demais com o empregado, noutras afrouxa o laço patrão-contratado e até parece que realmente gosta dele, dividido entre a reconhecida dependência de Pietruchka e alguma vontade de conversar pra valer. Vontade que pode ser estendida a quase todos a sua volta. Pouco sociável, o protagonista só não passa mais tempo perdido nos próprios pensamentos por causa do tédio da rotina. Ele desconfia ter algo errado consigo, vai se consultar, e após dúzias de palavras atravessadas do paciente Golyádkin, o paciente doutor o recomenda: “não seja inimigo da garrafa”. O conselho parece ótimo à nossa época, mas não era pra se entorpecer de qualquer vodka russa; implícito, o conselho do doutor era ‘se solta, cara’.
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Por ironia do velho Dostô, Yákov não enche a cara, tampouco conhece gente nova. Ele olha seus rublos cuidadosamente guardados na gaveta, ah, isso é uma quantia razoável, um homem com tantas economias vai longe! A gente acompanha esse raciocínio dele e é um pouco obrigado a concordar, ele foi longe. De um jeito torto, mas foi. Golyádkin fica obcecado em participar de um grande baile da alta sociedade, alimenta esperanças de obter algum prestígio, e o ápice de sua empolgação é se imaginar dançando com a filha do dono da festa. Ele fica ensandecido com tantas ideias, mas é possível ter um pouco de simpatia por esse inimigo da garrafa.
Só um detalhe: Golyádkin não foi convidado. Ninguém o suporta, ele é apenas tolerado no serviço. Fim. Só que ninguém o convence disso, e além de entrar de penetra na festa, Golyádkin falha vergonhosamente em suas interações, até ser expulso. Confuso, ele não volta logo pra casa e vaga por ruas e pontes, até se comover com alguém em situação mais trágica que a sua. Ou talvez no mesmo patamar, pois Golyádkin encontra um homem igual a si. Um sósia perfeito que compartilha todas as manias e feições do original, e o assusta por sua verossimilhança. Até o nome e a ocupação se repetem, deixando o primeiro – como o ‘original’ passa a ser chamado desta parte do livro pra frente – ainda mais desorientado. O golpe de misericórdia começa quando o segundo – a ‘cópia’ – age diferente do primeiro, levando sua fragmentada sanidade às favas.
O Duplo é um romance cobaia de Dostoiévski, rascunho das ambiguidades que ele formularia anos depois. Ao mesmo tempo em que podemos entender as motivações do protagonista também é muito fácil desconfiar de sua conduta, como se debaixo de suas preocupações ele quisesse nos fazer acreditar nele sem alternativa. Uma nota de rodapé explica que o sobrenome Golyádkin “deriva de golyadá, golyadka, que significa pobre, indigente, mendigo, miserável etc” (p.53 na edição publicada pela Editora 34), o que resume sua pose de quem pede atenção, mesmo que suas ações sejam ambíguas após receber um pouco do que busca. O Duplo é moldado tanto pelo que um personagem gostaria de ser quanto pelo que é, sem perceber o vínculo entre ambos. O que sabemos de Yákov Golyádkin chega em doses fragmentadas, embora fique muito claro para nós que ele não é tudo que pensa, independente da abordagem, ao contrário de seu ‘parente’ literário mais velho Rodion Raskólnikov, cujas motivações são mais claras – e igualmente fáceis de questionar.