Esconderijos do tempo: a poética das coisas pequenas, de Mario Quintana

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O faz do poeta Mário Quintana tão amado e admirado ainda hoje?

Não há dúvidas de que Mario Quintana é um dos maiores poetas brasileiros e, assim, da língua portuguesa. Óbvio que não se quer furtar o título ao Fernando Pessoa, que por sinal é o maior na escala Richter da lira, mas há que se dar o devido galanteio elogioso ao poeta passarinho de Alegrete.

Em Esconderijos do tempo, livro que o poeta escreveu já depois dos setenta anos, quando seu nome já era conhecido com o premiado Apontamentos de história sobrenatural (1976) e com livros como Espelho mágico (1951), O aprendiz de feiticeiro (1950) e A vaca e o hipogrifo (1977), o poeta desnuda o maior adversário do homem, notadamente do homem de idade avançada: o tempo.

Com uma escrita plástica, quase fotográfica, crônica (pois de cronista), leve, irônica e afiada, o poeta gaúcho vai tecendo a teia do transcurso do tempo, do transcurso da vida humana e das coisas. Diante do bordão de Heráclito, Quintana vai fotografando a passagem como uma Lispector faria na prosa, só que de maneira infinitamente mais graciosa, quase mozartiana:

 

“Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais…
Mas a tarde ficou transfigurada
– como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário (…)” (Poema em três movimentos, p.25)

  

Blaise Pascal dizia que o maior desespero do homem é estar sozinho num quarto fechado e completamente vazio. Lidar consigo mesmo, longe de qualquer apetrecho tecnológico, longe de qualquer coisa que o distraia, é a maior tormenta do homem. E é com a sua leveza característica que o poeta compreende e interpreta o filósofo francês por entre os labirintos dos seus esconderijos, desnudando os ecos silenciosos do universo diante dos aglutinantes palavreados humanos em torno dos dias:

 

“Há um grande silêncio que está sempre à escuta…
 

E a gente se põe a dizer qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!”
 

E, por todo sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta…
e cala”. (O silêncio, p.20)

E por mais que a sua poética dê voz às pequenas coisas e contraste com aquele ceticismo drummondiano, por mais que o poeta se agarre a um simbolismo quase metafísico em sua lira, o reconhecimento da efemeridade da vida e da inutilidade do tempo, portanto, da base de toda a vivência humana, sequestram-no em seus versos cabalísticos:

 

“A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente, sempre em frente…
 

E iria jogando pelo caminho a casca dourada
e inútil das horas” (seiscentos e sessenta e seis, p. 42).

E como na dobra de cada tempo, de cada momento, de cada espaço, e de cada vida existe uma solidão:

“A menina dança sozinha
por um momento” (Dança, p. 27).

O poeta pode reconhecer, em sua derradeira lira, aquela relatividade das coisas pintadas por tantos antes dele, pode finalmente encerrar seus apontamentos sobrenaturais para se dobrar à gravidade das coisas, mas não vê nesse niilismo uma perdição, e sim uma saída, uma espécie de paixão, e como Mozart, que após imergir sua música em escalas menores, retoma o tempo inicial de graciosidade, arremata:

 

“A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta? (…)” (Inscrição para uma lareira, p. 69)

Em tempos megalomaníacos, em que as redes dão a cada indivíduo a sensação de grandeza que é tão fictícia quanto irreal, ler Mario Quintana é um embalo para a alma, essa palavra vazia que tanto diz sobre nós, seres pequenos, bem pequenos…

 

Referência

QUINTANA, Mario. Esconderijos do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

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