O Homo Literatus conversou com um dos autores de Anatomia de um desastre, livro lançado em 2016, que busca explicar como erros estratégicos levaram Dilma Rousseff ao impeachment
O Brasil vive e ainda viverá abalos constantes na política e na economia. Tentar entender todos os fatos é uma missão árdua, complexa e cansativa. Embora pareça estar dividido em dois, o país não é só isso. Ideologicamente, é fácil isolar visões políticas: esquerda, direita, centro. Entretanto, dentro de um governo, tudo pode mudar. E decisões tomadas no passado reverberam no presente e no futuro.
Nesse sentido, o livro Anatomia de um desastre, escrito pelos jornalistas João Borges (Globonews e CBN), Cláudia Safatle (Valor Econômico) e Ribamar Oliveira (Valor Econômico) joga luz às sombras. Lançada no ano passado pela Penguin-Companhia, a obra mostra como a falta de soluções para problemas econômicos, vindos desde o governo Lula 2 (2006-2010), somada à crise mundial, foram alguns dos principais responsáveis pelos problemas enfrentados pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Com muitos dados e entrevistas de bastidores, Anatomia busca ser objetivo nos fatos. Um dos pontos positivos é a linguagem, acessível a quem não é da área econômica. Além disso, apresenta informações também da política – que, claro, anda de mãos dadas com a economia.
O Homo Literatus conversou com João Borges, que falou sobre a produção do livro e apontou para a possibilidade uma continuação. A entrevista, feita por telefone, ocorreu no final de março – portanto, antes da atualização dos dados de desempregados (atualmente, em 14 milhões de brasileiros) e antes das revelações envolvendo Michel Temer, Aécio Neves e companhia.
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Homo Literatus: Os três autores dos livros são jornalistas econômicos, trabalham e moram em Brasília e se conhecem há muitos anos. Isso facilitou a escrita de Anatomia de um desastre?
João Borges: Isso facilitou muito porque eu, Cláudia Safatle e Ribamar Oliveira somos amigos, estudamos juntos na UNB (Universidade de Brasília). Somos de três estados do Brasil e nos encontramos aqui [em Brasília]. Então, como jornalistas, fizemos a cobertura de todos esses ciclos da economia da brasileira a partir da década de 1970, início da década de 1980 – período conhecido com “a década perdida”, em que o Brasil conviveu com vários problemas ao mesmo tempo: inflação elevadíssima, dificuldade enorme no setor externo, impossibilidade de gerar dólar para bancar as despesas, com crise cambial e juros elevados, sem o crescimento do país e sem a solução dos problemas. Depois a gente acompanhou o Plano Cruzado (1986), o Plano Collor (1990) e vários outros planos fracassados. E acompanhamos atentamente o período de estabilização, que começa em 1994, com o Plano Real, que vai muito bem, seguramente, até o primeiro mandato do presidente Lula (2003-2005). Nós acompanhamos com muito interesse, até porque é de interesse pessoal e profissional. E é após esse período que a economia, os indicadores macroeconômicos e as decisões foram perdendo direção até chegar a essa que a gente chamou de a maior recessão do país.
HL: O livro traz muitas informações do segundo governo Lula e perpassa pelos problemas internacionais. À época você imaginava que a economia poderia chegar aonde chegou?
JB: Certa vez, fiz um comentário na Globonews: o governo dizia que os pessimistas estavam errados, e de fato estavam errados, porque os mais pessimistas não foram capazes de prever o tamanho do problema que nós criamos. Então, não só eu: acho que ninguém supunha que pudéssemos chegar à maior recessão da história. A gente sempre imaginava que o governo, qualquer que fosse ele, se anteciparia, de alguma forma, aos problemas e evitaria isso em que nós estamos, com quase 13 milhões de desempregados, três anos de recessão – agora com expectativa de sair dela. A gente não esperava. Mas você mencionou a crise de 2008. Além da crise internacional de 2008, que derrubou o crescimento, o consumo e, portanto, a inflação, ali, a economia brasileira, no segundo mandato do governo Lula (2006-2010), estava na direção de excesso de consumo, que pressionaria de qualquer maneira a inflação. Esse problema foi atenuado com a crise externa de 2009. O Brasil reagiu bem com as medidas de estímulo ao consumo porque tinha que se evitar uma recessão naquele momento, mas aí, quando chega 2010, já superado, digamos, o primeiro impacto da crise internacional, o governo achou que poderia repetir a fórmula de simplesmente estimular consumo, estimular crédito, que nada mais é do que estimular empregos e as famílias a aumentarem o endividamento além do limite prudente. [Com isso] Você entrou novamente numa rota de provocar desequilíbrio na economia – seria uma questão de tempo. Quando a presidente Dilma assume, em 2011, e a gente narra isso no livro, parecia que ela estava disposta a corrigir os excessos da economia. Só que, seis meses depois, no segundo semestre de 2011, o Banco Central surpreende todo mundo com uma redução não prevista da taxa de juros. Aí começaram a surgir sinais de desconfiança da estratégia da presidente Dilma. E veio um erro de diagnóstico. Apenas para ficar no principal: o governo passou a aumentar os gastos, os chamados empréstimos do Tesouro para o BNDES, chegou no total, somando os governos Lula e Dilma, a 500 bilhões de reais, para emprestar para empresas. A justificativa era a de que aumentaria o investimento. O investimento não chegou e ficou só o problema. Aí teve a intervenção no setor elétrico, uma redução forçada na tarifa de energia elétrica, na virada de 2013/2014, que resultou, depois, em um aumento muito maior da tarifa de energia. Teve o controle artificial do preço da gasolina, diesel e gás, que gerou um rombo bilionário na Petrobrás, muito maior que os desvios do “petróleo”. Ou seja, várias decisões que foram desorganizando o sistema econômico até chegar ao ponto em que chegamos.
HL: Você acredita que só por meio do impeachment a situação poderia melhorar?
JB: Essa é uma questão complexa, na medida em que a presidente Dilma foi perdendo sustentação política e com a popularidade muito muito baixa – a do presidente Michel Temer também não é muito diferente, mas aí com uma diferença: ele tem apoio no Congresso e ela já não tinha. Acho que também faltavam convicções à presidente Dilma de como recolocar a economia nos trilhos. Ela perdeu condições políticas de tocar o país. Se isso levaria ou não, necessariamente, obrigatoriamente, ao impeachment, é uma avaliação política e da opinião pública, que se manifestou. Mas para não fugir da tua pergunta, que é importante: eu acho que a presidente Dilma não tinha condições de recolocar a economia da maneira que era necessária naquele momento. Hoje nós temos o governo Temer que tem problemas seríssimos, sofre questionamentos parecidos em algumas coisas com a própria presidente Dilma. Aliás, esse PMDB deriva do governo do PT. Vamos lembrar que Temer era vice de Dilma, o ministro Alexandre Padilha foi ministro de Dilma, o ministro Moreira Franco também foi ministro de Dilma. Mas pelo menos o Michel Temer colocou uma equipe econômica capacitada e coerente em vários pontos importantes, não só no Ministério da Fazenda, mas no Banco Central, na Petrobrás, no BNDES. Isso está criando uma brisa um pouco favorável, não alivia ao ponto de entusiasmar, mas é um pouco favorável para sair da recessão. É como eu digo, recessão tem que acabar, não pode durar a vida toda. Há uns sinais de retomada da economia, ainda são frágeis, mas são consistentes. Vamos ver o que vai acontecer daqui pra frente, porque depende muito também do que vai acontecer na área política.
HL: O Brasil ainda está vivendo o pós-impeachment. Nada ainda está muito claro. Economia, política: ainda falta um final. Vocês pensam em escrever uma continuação?
JB: É uma possibilidade. Um possível segundo livro, que seria um desdobramento natural do primeiro, a gente teria que ver como é que isso vai terminar. Mas não temos certeza como isso vai se dar no final do ciclo. Ou seja, é difícil imaginar como será o final do mandato do presidente Michel Temer. Tem dúvidas importantes, a gente não sabe, por exemplo, se o Congresso vai aprovar uma boa reforma da Previdência. Uma boa reforma, que é um assunto polêmico, envolve desgaste do governo – mas do ponto de vista da própria Previdência e da gestão das finanças do Estado, é uma questão crucial, porque sem ela o país vai continuar com esses problemas de sempre. Assim: o horizonte não está claro ainda, mas é uma possibilidade de a gente narrar uma espécie de segundo capítulo, cujo desfecho, na realidade, a gente não tem ainda muito claro como vai se dar.