Jamais saberemos o que realmente origina e guia uma narrativa – pode ser um filme ou uma ida à lavanderia
Jamais saberemos o que guia uma narrativa. Luiz Ruffato, em texto publicado na Folha de S. Paulo, escreve que o filme Amarcord, de Frederico Fellini, norteou sua carreira. Além da composição de personagens calcada na memória particular, o autor utilizaria outras premissas adotadas pelo diretor italiano, tais como a banalidade do cotidiano e o discurso fragmentado. Essas duas características narrativas adotadas por Ruffato alinham-se com o conto “Lavanderia Angel’s”, do volume Manual da faxineira: contos escolhidos, de Lucia Berlin – com tradução de Sonia Moreira.
A história é narrada por uma mulher que aprecia ir a lavanderias, lugares frequentados por pessoas que não desfrutam dos benefícios do sonho americano e de todas as oportunidades prometidas pelo Tio Sam. Além das máquinas de lavar Speed Queen, ficamos sabendo que outros itens necessários para a composição desses espaços são caixas de som tocando soft rock – provavelmente algo que gire em torno de canções como Have you ever seen the rain, do Creedance, ou Don’t speak, do No Doubt.
Por ser um conto munido de fragmentos temporais e focado no prosaico, não se deve esperar por reviravoltas folhetinescas. O que há ali são pessoas invisíveis aos olhos de pessoas de bem, indivíduos que possuem capacidades escondidas pelo rosto cansado e pelas roupas amarrotadas.
Numa dessas esperas pelo fim do ciclo de lavagem, a narradora conhece Tony, um velho índio que tem como única meta de vida consumir garrafas de Jim Beam – um desses sujeitos que, dependendo a região dos Estados Unidos, terá sorte se for vítima apenas de olhares desconfiados (vide a segunda temporada da série Fargo).
Tony vem de uma linhagem de caçadores. Logo, também é um caçador e, como todo bom caçador, sabe ler marcas. Antoine Compagnon aproxima essa habilidade primitiva do papel desempenhado pelo leitor que abre um livro. Sentado em sua poltrona ou durante uma viagem de ônibus, ele decifra enigmas deixados pelo escritor. Eis a atividade do índio em questão. Talvez pouco saiba do idioma dos colonizadores, mas é um perito em ler sinais e, consequentemente, histórias.
Sentado ao lado da narradora, ele direciona, insistentemente, seu olhar para as mãos da moça. Ela sente-se incomodada. Tenta não olhar para a mesma direção. Resiste por um tempo. Cede. Só então percebe que aquele homem exalando álcool pelos poros está lendo a história de sua vida. Ele consegue ver, pelas marcas e cicatrizes ali expostas, sua biografia. Com seu conhecimento empírico e a tradição deixada por seus ancestrais, compreende todos os sofrimentos pelos quais aquela mulher desconhecida passou.
Os que não gostam de finais como os de Três anúncios para um crime talvez também não apreciem o desfecho (?) de “Lavanderia Angel’s”. No filme de Martin McDonagh, quando sobem os créditos (alerta de spoiler), não sabemos se Mildred Hayes (Frances McDormand) e Jason Dixon (Sam Rockwell) realmente levam adiante o plano de matar o estuprador da cidade vizinha ou se resolvem abortar a missão, optando por parar em um bar para tomar cerveja.
No caso do conto de Lucia Berlin, a narradora encerra seu relato (alerta de spoiler) dizendo nunca mais ter visto o velho índio. Jamais saberemos se mudou de vida ou se continua a frequentar lavanderias.