Notas sobre literatura e performance nas redes sociais

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Notas sobre literatura e performance nas redes sociais
Ilustração de Fabio Zimbres para a capa de "O Ano em que Vivi de Literatura"

Como é possível que, com personagens tão antipáticos, a narrativa de nossa geração (a geração das redes sociais) não pareça tão profundamente odiosa para o leitor do futuro?

Ilustração de Fabio Zimbres para a capa de O Ano em que Vivi de Literatura, de Paulo Scott

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Em O Ano em que Vivi de Literatura (Foz, 2015), Paulo Scott nos apresenta Graciliano, um escritor corroído pela fama precoce, que não consegue entregar um romance para a editora e divide seu tempo entre o monitoramento de suas redes sociais e a tentativa vã de se manter sóbrio e domar o próprio pau. Não é uma narrativa para estômagos fracos. A viagem rumo ao vácuo emocional de Graciliano é nauseante. Virar as páginas do livro é como avançar num filme pornô com a certeza de que cada encontro de Graciliano com uma personagem feminina resultará em uma passagem com alguma conotação sexual. Paródia e sátira foram algumas das palavras que a imprensa utilizou para definir o livro de Scott no seu lançamento. Parte da minha implicância com o livro, na época, devia-se justamente a isso: até que ponto uma obra que parodia ou satiriza um objeto, emulando este objeto, não começa a se tornar, por conseguinte, o próprio objeto que parodia ou satiriza? É o que James Wood chama de (respiremos fundo…) “tautologia do projeto literário contemporâneo”. Em uma síntese bastante rude: seria possível não fazer uma narrativa antipática com um personagem tão profundamente antipático quanto Graciliano? Paulo Scott tentou.

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Você conhece o tipo: jovem, alguns livros publicados que você não leu, uma ou outra matéria no currículo, um perfil movimentado nas redes sociais. Se você acompanha ou é do meio literário, terá pelo menos umas 100 amizades em comum. Certamente já terá visto alguma postagem compartilhada, entre aspas e assinada porque o que escrevem é por demais genial que não corra sempre o risco de ser plagiado por esse grande cardume de peixes pequenos que os segue e os admira – os tubarões. No perfil, Escritor na empresa Literatura. A foto clássica com o livro é um belo clichê a ser evitado. Preferível a cerveja com colarinho no copo americano. Bebe-se muito. Lê-se muito pouco. Afinal, não é preciso ler Fante, toda a Geração Beat (qualquer um deles), Hemingway, Nelson Rodrigues ou o cânone do bar, Bukowski, quando se pode apenas citá-los. São homens, geralmente. Mas há, claro, as versões femininas. Cada Henry Miller tem a Anaïs Nin que merece. O percentual de foda aqui, porém, é proporcional ao de literatura. Fode-se muito pouco fora dos contos esparsos, sempre ambientados em subúrbios decadentes, adornados por putas e marginais, com a linguagem crua e violenta que você já conhece daqueles posts. Com uma boa dose de otimismo, você poderá encontrá-los em antologias que são na verdade coletâneas, embora ninguém aqui se importe ou mesmo saiba a diferença. Você poderá encontrá-los em portais como este em que escrevo. Mas também é possível que você não os encontre em lugar algum. Afinal, não é preciso ter uma obra vasta quando basta ter uma opinião vasta.

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É uma espécie de decadentismo tardio. O mal de um século que já passou há muito tempo. São enfant terribles velhos demais para ser enfants e vidrados demais na internet para ser terribles. São Werthers que se esqueceram de cometer suicídio. Casimiros de Abreu que não morreram de tuberculose. Kerouacs que não puseram o pé na estrada e Bortolottos que não foram baleados. O registro literário é vastíssimo. Não só fora das páginas, mas dentro da própria literatura contemporânea. Quantos romances você não leu – alguns bons, até –, em que os protagonistas eram estas figuras meio execráveis, com alguma falha incorrigível de caráter, alguma disfunção psicológica que parecia impulsioná-los a lembrar sempre da existência do próprio pau, seja pulando para fora das calças no irresistível clichê do palhacinho na caixinha de surpresas, seja oferecendo carreiras de cocaína em ereções monumentalmente priaprística? Chegava a ser fascinante, dependendo do seu nível de fixação erótica e de desenvolvimento psicossexual. Podia ser um modelo para se tentar levar para fora das páginas, sobretudo se você não passou por aquele momento da adolescência em que é tentado a se enfiar em todos os buracos além do oco da própria mão, ou se não foi capaz de se medir com uma régua para constatar o quão inverossímil poderia ser aquela cena que você acabou de ler. Foi um projeto literário para alguns autores, o auge da autoficção, até que estes mesmos autores passaram a declarar sua morte e se interessar por outros assuntos. O arquétipo, porém, permaneceu pairando por aí.

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Tem sido cada vez mais difícil compreender que quando morre um escritor é uma pessoa que se vai. O velho axioma de que o autor existe apesar da sua obra, convenientemente ignorado na maioria das ocasiões, é agora contrariado da forma mais perversa e dolorosa. Autor e obra são uma coisa só. E a obra do autor já não é mais somente aquilo que ele deixou escrito nos livros, mas também os seus rastros nas redes sociais, suas fotos que rolam junto com a foto dos vivos em sua banalidade cotidiana evidente: com seus cães, com seus gatos, com suas comidas, com suas viagens. A outra máxima possível – de que uma pessoa existe apesar de sua autoria – parece não ser mais tolerável. Todas as fronteiras estão borradas. O pessoal é político. E literário, também. A pessoa morre. E a ilusão de que autor e obra permanecem se perpetua de uma forma cada vez mais enganosa. O sentido da morte se esvazia, quando ela também é performance. Pense em todos os livros que jogam com isso, com a morte – seja nos seus títulos, seja nas suas narrativas. Pense neste verbo: jogar com a morte.

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“Qualquer defunto vende mais livro que você que tá aí preparando o próximo romance”, escreve um escritor em sua página do Facebook, na noite da morte de um colega. Numa outra página, uma poeta insinua que todos pareciam conhecer o morto, menos ela. A postagem incita um show de horrores, uma avalanche de comentários bizarros. “Os jabutis vivem cerca de 150 anos”. “Bonitón”. “Era gatiiinhoo”. “Eu uso camiseta da tia dele”. “Agora vai vender livro à beça… já até me indicaram um deles”. A sucessão de “Nunca nem vi”, se referindo ao autor morto, é vertiginosa. Há uma ou outra manifestação de solidariedade. A autora do post, depois de lançar um emoticon chorando de rir, dá o braço a torcer: “Era bem gato.” E, irônica, apela em caixa alta: “PAREM DE OBJETIFICAR O MORTO”.

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“O que distancia minha geração das anteriores é o narcisismo e a carência elevados a ethos predominante”, diz o escritor Daniel Galera em entrevista recente. Narcisismo e carência. Dois ingredientes que alimentam a performance corrente do escritor nas redes sociais. Por trás da aparente marra, do ar de pitbull no canil ou de Maradona na pelada do fim de semana, a realidade meio patética informada por um poeta que vi, dia desses, cometendo um raro sincericídio na orelha do seu livro, debaixo da foto em preto e branco: “Fulano é poeta, estuda publicidade e mora com a mãe em Brasília”. De mera caricatura, repleta de traços excessivos e extravagantes, o personagem Graciliano, de Paulo Scott, começa a virar o retrato preciso de uma geração de escritores inseguros que já está sucedendo essa geração anterior – feita por nomes que já vêm encarando o processo de gradativo apagamento de seus avatares, de suas falsas identidades virtuais. O mau caratismo que permeia as identidades que restam, porém, e as que vêm surgindo e se multiplicando, aproveitando a lacuna deste processo, pode ser apenas mais uma construção ficcional, mais uma prova de que redes sociais são também um espaço para personagens e enredos. A pergunta que eu me faço, porém, é sempre a mesma: como é possível que, com personagens tão antipáticos, a narrativa de nossa geração não pareça tão profundamente odiosa para o leitor do futuro?

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