Memorial do convento, de José Saramago: a desconstrução teológica de Saramago e o fundamentalismo religioso

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Um ensaio sobre Memorial do Convento, de José Saramago
Saramago
O autor refaz, sob uma crítica ao fanatismo religioso e ao absolutismo monárquico, a história da construção do Palácio de Mafra, Portugal. Mais precisamente, no ano de 1711 tem início a construção do convento que abrigaria, inicialmente, um modesto número de frades franciscanos, em razão de uma promessa feita pelo Rei D. João V para que a Rainha Maria Ana Josefa conseguisse lhe dar um herdeiro. Contudo, a necessidade de um rei megalômano e com medo da morte faz com que mais de quarenta mil portugueses trabalhem para construir uma obra de proporções gigantescas, no intuito de el-rei  deixar evidente a marca de sua imponência e a perenidade de sua memória.
Padre Bartolomeu Lourenço, protegido do rei, tinha novas ideias, entre elas, a construção da passarola, para realizar seu sonho de voar. Suas pesquisas voltadas para a construção da engenhoca ficavam encobertas em segredo, incluindo a cumplicidade do rei, pois ao homem, não era permitido voar, dado que isso significava uma heresia ao tentar se comparar a Deus.
Em autos-de-fé, em praça pública, o Santo Ofício executava suas vítimas do século XVIII, em geral acusados de bruxarias, feitiços ou pensamentos de afronta à religião católica. Em um desses autos, Baltasar Sete-Sóis conhece Blimunda (mais tarde chamada de Sete-Luas, pelo Padre Bartolomeu). Blimunda estava a espreitar com discrição a execução ou deportação (a história não evidencia) da própria mãe, acusada de bruxaria. Em meio ao alarido e histeria coletiva de fundo religioso, Blimunda percebe, por um tipo de comunicação com a mãe, que Baltasar era o homem com quem ela deveria viver. Assim, sob o pretexto de saber seu nome, ela o convida para ali ficar com ela.
Baltasar é um ex-soldado da guerra, em decorrência da qual lhe faltam mão e braço esquerdos. Blimunda, assim como a mãe, possuía um dom especial, do qual apenas Padre Bartolomeu sabia, e depois veio a sabê-lo também Baltasar. Em jejum, ela conseguia ver o interior dos homens e de todas as coisas, não espiritualmente ou metafisicamente, mas via a matéria escondida mesmo. Portanto, conseguia ver um tumor ou uma criança no ventre de uma mulher, por exemplo. Ao começar uma relação com Blimunda, Baltasar também se aproxima de Padre Bartolomeu e os três tornam-se amigos fortemente ligados por um segredo e vontade de realização humana: a construção da passarola. Assim, trabalham por anos, com afinco, seguindo as instruções de Padre Bartolomeu para arquitetar a máquina.
Após a conclusão do trabalho, em uma fuga inesperada do Santo Ofício, os três partem para o alto, no primeiro voo da passarola. Como o voo não saiu com toda perfeição esperada nas manobras necessárias, Padre Bartolomeu sente-se fracassado em empenhar sua vida na máquina e ainda por ter envolvido as vidas do casal Blimunda e Baltasar. Por essa razão, some no mundo, e, ao que tudo indica, comete suicídio tomado pela loucura.
Desamparados dos favores do padre, o casal passa a viver em Mafra, onde Baltasar consegue trabalho na construção do convento e de tempo em tempo, sai em misteriosas visitas para cuidar da passarola, encoberta pela mata de Monte Junto, onde caiu após a primeira tentativa fracassada de voo. Durante a narrativa da construção do convento de Mafra, são ressaltadas as diversas mortes que ocorreram em decorrência das condições de trabalho daquela gente, a hipocrisia de uma sociedade que se flagelava em público em ritos religiosos para expurgar seus pecados e o autoritarismo de um monarca que se vangloriava igualando-se a Deus, exibindo seu poder e frequentando conventos femininos em busca dos prazeres sexuais com as freiras, com quem mantinha relações, fazendo nascer vários bastardos dentro dos muros das ordens religiosas.
O que meu olhar registra sobre a obra de Saramago?
Ao relatar o autor, sob o viés de denúncia o autoritarismo real e o fanatismo religioso (este último, principalmente), adentramos o terreno que favoreceu o recrudescimento de críticas, por parte de uma ala mais conservadora do catolicismo, perante a escrita de José Saramago. Afinal, já é de conhecimento de um grande público o teor nada ortodoxo com o qual o autor aborda temas religiosos e dogmáticos.
Ateu, Saramago oferece, em Memorial do convento, uma desconstrução teológica, ou ainda, uma abordagem teológica não convencional.
Ao narrar o episódio em que Blimunda, deliberadamente, sai em jejum para a igreja no intuito de olhar para a hóstia consagrada do altar e investigar o que poderia, nela, ser encontrado, o autor destaca a visão de Blimunda a respeito da mesma nuvem de vontades que encontra na maioria dos homens, ou seja, aquela nuvem escura vista por Blimunda, contida na hóstia e que denota a vontade é também o mesmo material encontrado no interior dos homens.

[…] E Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurrecto em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o padre Bartolomeu Lourenço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser expicado […] (SARAMAGO, 1982).

Ao evidenciar essa semelhança de vontades entre o humano e o divino, Saramago coloca frente a frente duas visões teológicas: uma mais tradicional, que trata da vontade de Deus como algo vertical, que vem como uma ordem de cima para baixo, algo que precisa ser percebido e obedecido; e uma reconstrução teológica que trata a vontade de Deus em consonância com as vontades humanas, algo que pode ser percebido e construído na horizontal, humano e divido em harmonia e semelhança. As vontades dos homens são as mesmas que as vontades de Deus porque é na realização humana que o divino se realiza, que se concretiza. Nesse ponto, convém lembrar a visão teológica de Andrés Torres Queiruga em sua obra A revelação de Deus na realização humana. Na obra, Queiruga trata a revelação como algo que necessita da cooperação do homem para que aconteça. Na apresentação do livro, está contida uma frase de Juan Luis Segundo que diz: “Deus não se revela a não ser na e para a realização dos homens e mulheres que buscam dar sentido a suas existências. ”
Trata-se de um novo paradigma que concebe a revelação não como um ditado verbal (expressão do próprio teólogo), mas como uma percepção do ser humano sobre suas necessidades em seu processo histórico apoiada em uma escuta atenciosa para uma necessidade maior. Assim como Saramago contrasta em toda sua narrativa com sua desconstrução inusitada com a teologia clássica e seu tom solene sobre os diversos dogmas católicos, Andres Queiruga traz à baila o quanto essa solenidade e abstração afasta-se do sentido bíblico e, consequentemente, da realidade humana.
Uma personagem como Blimunda, retratada como uma mulher despojada, direta, sem pudores desnecessários, capaz de entrever a hipocrisia sustentada nas máscaras do comportamento humano e nos ritos litúrgicos excessivos e não verdadeiros, porque não em consonância com a realidade, traduz a mais inusitada desconstrução teológica do autor de Memorial do convento, que oferta ao símbolo narrativo do despojamento o poder de enxergar a essência do sagrado.
Há ainda um outro aspecto em Blimunda que convém destacar: o contraponto que essa personagem faz com a Rainha Maria Ana Josefa. Enquanto aquela é livre para lidar com a fé da maneira como sente que deve, enquanto é livre para amar e para escolher seu parceiro, enquanto é livre para pensar e para expressar seus pensamentos e aforismos, que ocupavam a reflexão até de Padre Bartolomeu Lourenço, esta estava presa em uma vida de aparências e infelicidades, ciente de que não era amada e nem desejada pelo rei, ciente das traições reais e dos bastardos que nasciam, fantasiando paixões oníricas e impondo-se, depois, a culpa, encontrando na prática da religiosidade muito mais uma maneira de conviver com a suposta culpa que ela achava que tinha do que como uma tábua de salvação para sua vida infeliz.
Ampliando as possibilidades teológicas a outras personagens, o narrador (que ora é onisciente e ora adquire a perspectiva e o foco de alguma personagem isolada) traduz nos exatos termos a amizade entre Blimunda, Baltasar Sete-Sóis e Padre Bartolomeu: uma verdadeira trindade humana. Quando toca nesse ponto, também traduz os anseios de novos paradigmas teológicos quanto à trindade, que em meados do século XVIII jamais poderia ser concebida com a participação humana em sua dínamis. Padre Bartolomeu executando o papel do Pai, porque concebe a ideia inovadora e criadora da passarola, Baltasar no papel de Filho, porque acolhe o projeto do Pai e o executa com consciência plena de que deve ir até o fim do projeto (até que, por ele, morre) e Blimunda fazendo as vezes do Espírito, porque possui os dons espirituais necessários para que o trabalho se concretize.
Ao longo da narrativa é possível entrever outras desconstruções para além dos dogmas já mencionados, como quando o narrador coloca em xeque o mito bíblico do Paraíso, a validade do sacramento da confissão e a existência do lado esquerdo de Deus:

[…] Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta […] (SARAMAGO, 1982).

Evidentemente, Saramago transpõe para sua obra a visão e os questionamentos de um livre-pensador. Quer também apontar para as armadilhas dos excessos e do fanatismo religioso, que, em vez de contribuir para que a mensagem religiosa seja melhor aproveitada, apenas colabora para um processo de desumanização e de degradação civilizatória. Antes de preconceber qualquer ideia a respeito de sua literatura, tomados por fortes raízes religiosas que temos deste lado do Atlântico (assim como as possuem também o país de origem do autor), convém saber que, apenas com o livre-pensar é possível atingir certos estágios de desenvolvimento, como tem comprovado o nosso processo civilizatório. Disse Bertrand Russell em Ensaios céticos que o livre-pensar jamais será plenamente alcançado, mas que é possível, hoje, aproximar-se bem mais dele.
Podemos dizer que um pensamento é livre quando ele é exposto a uma competição liberada entre crenças, ou seja, quando todas as crenças possam se manifestar, e não haja vantagens ou desvantagens legais ou pecuniárias associadas a elas. (RUSSELL, 1920)
Ainda sobre o tom e o teor nada aveludado da escrita de Saramago, muito provável que seu conterrâneo Eça de Queiroz pudesse apreciar, já que teceu severas críticas à cultura portuguesa de sua época a respeito de uma certa falta de prática realista nas letras.
Sabemos cantar, algumas vezes protestar, jamais explicar. Eis por que não existe crítica em Portugal. Também o romance e o drama, até os últimos tempos, eram somente obras de poesia e de eloquência, algumas vezes, ensaios filosóficos, outras vezes, elegias sentimentais. A ação era concebida fora de toda verdade social e humana. (EÇA DE QUEIROZ, 1880).
Levando em consideração que escrevo essa resenha no dia da festa de Santo Inácio de Loyola e retomando a ideia da desconstrução teológica que vai ao encontro da tese de Queiruga sobre a participação do homem na revelação, é bom ressaltar que, a despeito de muitos rumores quanto à validade do novo paradigma teológico da participação humana na revelação de Deus, foi o próprio Santo Inácio quem tratou das potências naturais humanas como primordiais para que a graça divina possa atuar – a graça pressupõe a natureza. Foi Santo Inácio quem recomendou que, ao entrar em Exercício Espiritual, o fiel o fizesse de modo a confluir nesse momento suas potências naturais humanas para que a ação de Deus pudesse ser sentida e acolhida: “[…] usa das suas potências naturais mais livremente, para buscar com diligência o que tanto deseja […]”. São essas potências: liberdade, memória, entendimento e vontade. Portanto, também para Inácio, não teria razão de ser uma religião que retirasse do homem sua capacidade racional, que junto com a memória, pudesse estabelecer uma ampliação de horizontes na vivência dessa fé e nas novas luzes teológicas que das experiências humanas pudessem resultar.
Dada esta resenha na Festa de Santo Inácio, em 31 de julho de 2016

Tomai, Senhor, e recebei
toda a minha liberdade, a minha memória,
o meu entendimento e toda a minha vontade,
tudo o que tenho e possuo; Vós mo destes;
a Vós, Senhor, o restituo. Tudo é vosso,
disponde de tudo, à vossa inteira vontade.
Dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta.

(Oração de Santo Inácio)

 
Algumas curiosidades a respeito da obra

  • Em entrevista, Saramago disse que sua escrita peculiar, sem utilizar sinais de pontuação ou parágrafos, é uma tentativa de se colocar como um falante ao escrever, sentindo-se um interlocutor da própria obra e não, propriamente, um escritor. Queria colocar-se num lugar mais comum com todos nós.
  • A peça Memorial do convento foi apresentada pela primeira (e única?) vez no Brasil em 2013, no complexo Feliz Lusitânia, numa parceria entre a UFPA e a Fundação José Saramago. O local escolhido justifica-se pela arquitetura que melhor reproduziria o cenário da narrativa, que está ambientada no século XVIII.
  • Saramago, além de explicar sua estratégia peculiar de escrita, também disse em entrevista que, ao visitar o Palácio de Mafra, contemplando sua imponência, escreveria sobre os bastidores da construção do palácio-convento. Arrependeu-se logo depois de ter dito, mas deu cabo da tarefa por ter manifestado o desejo da escrita da obra em voz alta, tendo outras pessoas como testemunha. Disse ainda que, dada a complexidade que o absorveu na construção da narrativa, não a teria feito se não fosse o comprometimento ao qual se sentiu atado quando pronunciou sua vontade em alta voz diante de outras pessoas que, certamente, o cobrariam do feito mais tarde.
  • A imponência arquitetônica de Mafra só pôde ser erigida graças ao ouro do Brasil. Além de enriquecer os cofres portugueses, quase todo o ouro que lá está é de origem brasileira.

 
REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
RUSSELL, Bertrand. Ensaios céticos. MOTTA, Marisa (Trad.). Porto Alegre: L&PM, 2008.
EÇA DE QUEIROZ, José Maria. O mandarim. Porto Alegre: L&PM, 2001.
INÁCIO DE LOIOLA. Exercícios Espirituais: tradução do autógrafo espanhol. DIAS PEREIRA, SJ, Dias Vital (Trad.). BAPTISTA, SJ, F. de Sales. (Org.). Braga: Livraria A. I.

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