Onde o branco é mais branco

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Onde o branco é mais branco
Cida Bento. Foto: Nego Júnior

Em “O pacto da branquitude”, Cida Bento discute sobre o racismo no Brasil e como a cultura tende a favorecer os brancos.

Cida Bento. Foto: Nego Júnior

Propaganda da Omo?

Parece propaganda de sabão em pó. Ou placa de boca de cocaína (nunca vi). Mas o título tem que ver com um livro editado em 2022 pela Companhia das Letras: “O pacto da branquitude”, da Cida Bento.

A ideia do livro partiu de uma sequência de negativas em processos seletivos de emprego enfrentadas pela autora, mulher preta. A ficha caiu: por mais qualificada que fosse, com dois diplomas – um de magistério e outro de psicologia –, nunca seria escolhida para uma vaga de trabalho, ocupadas por brancos com a mesma formação – ou inferior. Essa situação ficou nela como uma pulga coçando ali na orelha: o mesmo ocorreria com outros corpos pretos como o dela? Em sua família? Seus amigos? A resposta era sempre a mesma: sim.

Por conta dessa resposta, nasceram perguntas, que derivaram em um mestrado e em seguida em uma pesquisa de doutoramento. Em ambos, Cida investigou o mesmo modelo que excluía aqueles corpos, sobretudo de corporações – ou seja, adentrou a área do RH. Adivinhem o que ela encontrou? Um certo acordo tácito, não verbalizado e muito menos aceito, de autopreservação e perpetuação branca.

(…) é fundamental observar também que nos altos postos de empresas, universidades, do poder público, enfim, em todas as esferas sociais, temos, ao que parece, uma cota não explicitada de 100% para brancos”

Omo total!

We have a deal!

A autora percebeu que em todas as esferas corporativas que investigou havia esse combinado, que ela nomeou como “pacto narcísico da branquitude”:

As instituições públicas, privadas e da sociedade civil definem, regulamentam e transmitem um modo de funcionamento que torna homogêneo e uniforme não só processos, ferramentas, sistemas de valores, mas também o perfil de seus empregados e lideranças, majoritariamente masculino e branco.”

Tal pacto traz um componente narcísico, de autoelogio, acoplado a um dispositivo ainda mais nocivo e cruel: a determinação de que tudo o que escapa desse corpete social – o diferente, o não universal, o preto, a mulher, o não heteronormativo – é inaceitável, freak, esquisito, excluído, anormal: não aceito. Tudo isso acontece para o bem daquela hegemonia branca, masculina e heteronormativa, ou seja, para a manutenção de seus históricos privilégios.

Há quem alegue que as políticas compensatórias, como as cotas raciais, por exemplo, sejam as vilãs de uma sociedade que historicamente tropeça em seus próprios erros. Só que muitos desses já tiveram seus privilégios.

Cotistas desagradecidos

Em artigo intitulado “Os cotistas desagradecidos”, publicado no Sul21, o jornalista e historiador Tau Golin relata que os imigrantes alemães e italianos que aqui chegaram no fim do século XIX com o objetivo de embranquecer e “melhorar” a raça brasileira (logo depois de uma abolição da escravatura que deixou milhares de negros ex-escravizados nas ruas, sem educação, capacitação, emprego ou terra para cultivar) receberam diversos incentivos – desde uma pequena reforma agrária, específica para os imigrantes que se fixaram na região Sul do país, até financiamento para implementos agrícolas e sementes.

As políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas. Aos servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões e prostitutas da Europa foi acenado com a utopia cotista. Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que pudesse semear o seu sonho. (…) juntas de bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram foi em condições módicas. Sendo cotistas do Brasil puderam superar a maldição de miseráveis, pobres, servos, e de execrados socialmente (…)”

Contudo, repito, a imensa massa de ex-escravizados passou a habitar as ruas e mais tarde as favelas – comunidades – das cidades brasileiras. E aí está a raiz de nossa desigualdade social.

Falando sério

Foi Suely Carneiro (filósofa, escritora, ativista antirracismo do movimento social negro brasileiro, fundadora e atual diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil) quem disse o que eu rascunhei no fim do parágrafo anterior: que combater a desigualdade social brasileira será sempre chover no molhado enquanto não cair finalmente a ficha de que, no subsolo, nos intestinos dessa desigualdade, encontra-se o racismo. Afinal, não estamos em um país dividido entre ricos e pobres; nosso país divide-se entre brancos ricos e pretos pobres, na sua maioria – e isso quem diz são as estatísticas do IBGE, não um zombeteiro sádico que gostava de fazer lives noturnas enquanto tirava o cerume do umbigo exposto.

68% da nossa população carcerária (pouco mais de 420 mil almas) é composta de pretos ou pardos (declarados), mas apenas 59% da população brasileira declara-se preta ou parda. Isso não pode – não deve – ser atribuído à índole ou a uma suposta predisposição genética (isso já foi tentado na virada do século XIX para o XX e, portanto, está mais que ultrapassado), mas sim a razões sociais, históricas e sobretudo raciais (em bom português: racistas, que nós, brasileiros, insistimos em negar que somos).

É preciso mudar o roteiro deste país. E, para mudar o roteiro, mudam-se os protagonistas.

O protagonismo preto vem incomodando muito quem se acomodou no colchão do pacto da branquitude, mas está mais que na hora de nos assumirmos como um país predominantemente preto, profundamente preto, orgulhosamente preto.

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

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