Os treze contos intensos de “O sol na cabeça”, de Geovani Martins

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Os treze contos intensos de “O sol na cabeça”, de Geovani Martins

Em treze contos intensos, “O sol na cabeça” é a bela estreia de Geovani Martins na literatura nacional.

Soube do livro através de uma revista para professores de Literatura. A matéria trazia um trecho do primeiro conto, “Rolézim”: “Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo”. Fui fisgada: assim que pude, corri para uma livraria e abracei meu exemplar.

Treze contos-tiros

O sol na cabeça apresenta capa de um laranja que desperta. O “O” do título pairando imenso, tal qual o astro, já de cara nos remete ao clima da cidade que ambienta suas histórias, o Rio de Janeiro.

Nessa sua primeira obra, Geovani Martins nos traz treze contos. Número este que me remonta aos treze disparos que atingiram o Mineirinho relatado por Clarice em crônica. São treze contos-tiros. Rajadas de realidade.

O primeiro não nos dá alívio de segurança. Recebemos aquela linguagem como quem toma um tapa. Narrado em primeira pessoa, a voz que fala é a do garoto de comunidade, com suas gírias, trejeitos e toda a genialidade da língua falada. Esse conto nos transporta para um ambiente pesado, mas que consegue ser mostrado com naturalidade.

Espiral”, ainda em primeira pessoa, vem para enxergarmos o outro lado do medo que se estabelece entre perseguido e perseguidor, vítima e ladrão.

Do terceiro ao décimo,

continuamos nos envolvendo com vidas sempre à margem, histórias socialmente periféricas, sob um ponto de vista que as traz para muito próximo do leitor. Aí começa também a variação do foco narrativo. Ora se voz aos protagonistas, ora o narrador é o encarregado de nos levar até eles.

Conhecemos a história de um menino que pega a arma do pai para brincar de polícia e ladrão com os amigos, no tenso Roleta-russa”.

O caso da borboleta” nos prende, delicadamente, à história de um menino de nove anos chamado Breno, com seu desejo de voar na vida, e uma borboleta que entra pela janela da cozinha.

Aquela tal de UPP

A história do periquito e do macaco” surge com linguagem direta, real. No conto, um narrador em primeira pessoa, morador da favela, conta um caso ocorrido quando a UPP invadiu seu morro.

Primeiro dia” traz com habilidade a história de André, 11, em seu primeiro dia de aula na escola dos meninos mais velhos. É uma amostra cativante da pré-adolescência – com seus medos, lutas e mitos. Daqueles textos que cativariam facilmente os alunos em uma aula de leitura, fisgando-os para dentro do texto, instigando-os a ler mais.

Com Rabisco”, de forma sensível o narrador nos apresenta Fernando, pichador, agora pai, na luta contra seus impulsos.

Nesse meio, o conto A viagem” se destaca pelo narrador ser um universitário que foi passar a virada de ano com amigos em Arraial do Cabo. Reflexões e experiências com drogas são o fio condutor desses dias.

Entretanto, logo vem “Estação Padre Miguel” e leva o leitor novamente à realidade pesada de um ambiente de compra e consumo de drogas, algo exposto com naturalidade pelo narrador.

O cego” é a história do seu Matias, deficiente visual que tem como emprego tocar com palavras o coração das pessoas no ônibus. É curioso observar como a escrita – desse e dos outros contos – alia com naturalidade fatos tocantes com fatos duros. Isso gera até mesmo um certo tom cômico que nos faz suspirar ao fim: é a vida…

O mistério da vida

Mas “O mistério da vila”, décima primeira narrativa, é embriagante. Com sutileza e mistério dignos de um Guimarães Rosa moderno, apresenta para o leitor a sábia mãe de santo dona Iara e como ela é percebida através dos olhos de três crianças da vila.

Chegamos, então, ao contoSextou”. Nele, um menino da comunidade fala sobre como começou a trabalhar para ajudar em casa e comprar algumas coisas para si. A história culmina em uma sexta-feira de pagamento. O relato é marcado pela tentativa do narrador de ir elaborando por palavras as sensações de revolta que o tomam diante das injustiças sociais.

O livro termina com “Travessia”, décimo terceiro conto. Talvez promessa de continuidade? Não neste caso, pois é a narrativa do atravessamento para o lixão do corpo de um viciado alvejado na favela. Tal responsabilidade coube a Beto, narrador-personagem autor dos disparos fatais. Ao longo do relato, acabamos nos tornando cúmplices de Beto e nos angustiamos na torcida para que ele consiga levar o corpo até o local sem ser pego.

Na obra toda, não há certo nem errado. Há a realidade. As linhas textuais nos conduzem sem maniqueísmo, sem julgamentos.

Sobre o autor

De acordo com a orelha do meu exemplar e com pesquisa breve feita na internet, o autor nasceu em 1991, em Bangu, no Rio de Janeiro. Trabalhou como homem-placa, atendente de lanchonete, garçom em bufê infantil e barraca de praia. Em 2013 e 2015, participou das oficinas da Flup, Festa Literária das Periferias. Em 2015, apresentou na FLIP a revista Setor X, que publicava textos seus e de outros escritores de favelas do Rio. Voltou para Paraty em 2017, quando assinou contrato com a Companhia das Letras para lançar O Sol na Cabeça. Antes mesmo da publicação, a coletânea de contos foi vendida para editoras de nove países. Os direitos de adaptação para cinema também foram negociados com o cineasta Karim Aïnouz.

Referência:

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça: contos. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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