Resenha: Cinzas do Norte – Milton Hatoum

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Após a leitura de Cinzas do Norte, deparo-me com a difícil tarefa de falar sobre este livro. O problema é escolher o que dizer, diante de uma obra que me tocou tanto. Este terceiro livro de Milton Hatoum venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura e o Prêmio Jabuti de melhor romance; com todos os méritos devidos.

A trama concentra-se, em sua maior parte, na Manaus dos anos cinquenta e sessenta. Como todas as histórias de Hatoum, das que li até o momento, esta também tem uma estrutura que lembra uma saga, a história de um amigo contada a partir do ponto de vista de outro. Olavo (Lavo), menino órfão, criado pelos tios, acompanha toda a trajetória de Raimundo (Mundo), menino de família nobre. A ligação entre as duas famílias vem de dois pontos, a amizade entre Alícia, mãe de Mundo, e a finada mãe de Lavo; e também do relacionamento fogoso, às escondidas, entre Alícia e Ranulfo, tio do narrador. O primeiro encontro de Lavo com seu amigo acontece cinzas do nortena escola, onde este é levado pela mãe, muito linda e assediada pelos outros meninos. Todos mexem com Mundo, que fica pelos cantos, sempre desenhando. O tempo passa e Lavo, narrando a história, começa a perceber o desinteresse do outro menino à educação formal; acabando por ter que estudar em outra escola, pois havia feito alguns desenhos deformados de seus superiores. Jano, o pai do garoto e empreendedor na Vila Amazônica, não se conformava com o comportamento do filho, o herdeiro que tanto tinha sonhado; porém que desde muito pequeno o decepcionava, por querer brincar com as crianças pobres; fato que acabou fazendo com que o pai o prendesse no porão; até que ele teve idade para começar a fugir. À medida do possível, Alícia o ajudava, escondendo do marido que o filho frequentava a casa de um artista chamado Arana, a quem o tio de Lavo dizia ser mercenário e não artista. Desta forma, Olavo vai acompanhando o crescimento de Raimundo, a partir de sua convivência com os tios, Ranulfo e Ramira – esta última, que lhes sustenta, trabalhando de costureira – a ele e ao tio que não quer sair da “vida boa” –, e que depois acaba pagando os estudos de Olavo, no curso de Direito –. Neste contexto, as tramas vão se desenvolvendo: o conflito entre Raimundo e seu pai, a paixão entre Ranulfo e Alícia, o casamento insosso desta e de seu marido, a amizade entre Mundo Lavo, entre outros, que vão fazendo o leitor maravilhar-se a cada página virada.

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“Ele te admira, Lavo. Um órfão criado por uma tia pobre… Vai der advogado, e pode vir a ser juiz, doutor… Mais um que vem lá de baixo! Jano pensa que Mundo se degenerou. Tem medo do filho artista. Por que não almoças com ele? As palavras de um órfão valem mais que as minhas”. (pg. 145).

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Algo que me chamou a atenção ao ler o livro foi a definição de Hatoum sobre a literatura, impressa na fala de seus personagens:

“ ‘Estou trabalhando, mana”, disse tio Ran. “Trabalho com a imaginação dos outros e com a minha.’
Ela estranhou a frase, que algum tempo depois eu entenderia como uma das definições de literatura”. (pg.18).

E este aspecto me fez pensar como tenho trabalhado a minha imaginação enquanto leio? A sensação que tenho ao ler se assemelha a um pacto com o escritor, aceitando a ficção que ele me propõe e tendo como contrapartida a possibilidade de ver o mundo através da experiência sensorial dele. Em outras palavras, fui à Manaus das décadas de cinquenta e sessenta de carona com Hatoum; e ela era real, não ficcional. Julguem-me.

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Um dos personagens mais interessantes – talvez o segundo, em minha ótica, ficando atrás apenas de Mundo – é Ranulfo. O tio do narrador transmite a sensação de sempre estar escondendo alguma coisa, embora não seja um ser misterioso; ele parece aquele “malandro” que todos nós conhecemos; que não trabalha, mas todos têm em boa fé. Na página setenta, ele caçoa do sobrinho, Olavo, dizendo: “Devias passar a vida lendo e vivendo por aí, sem profissão. Vais acabar que nem tua tia, trancado numa saleta e rezando pra conseguir um cliente… Ou então correndo de uma vara pra outra.”. Ao que o rapaz responde: “Não sei se é exatamente essa a minha vocação, mas posso escrever, redigir processos, defender e acusar…”. Incontido e debochado, o tio arremata: “Acreditas em vocação? Eu não tenho vocação pra nada, vivo inventando… Inventa, rapaz. Ou então procura alguma coisa. Mundo está procurando, por que não fazer o mesmo?”.

Apesar do caráter duvidoso dele, ou não, depende do julgamento, fica a sugestão nas entrelinhas, por que trabalhar se podemos inventar? Ou fazer da invenção um trabalho.

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Certa vez, o grande escritor argentino Jorge Luis Borges disse que se orgulhava dos livros que tinha lido, não dos que tinha escrito; posso dizer que me orgulho de ter lido Cinzas do Norte. Milton Hatoum é um dos papas da nossa literatura contemporânea; e eu deixo aqui como indicação.

Título: Cinzas do Norte
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Ano de publicação: 2012
Páginas: 240

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