Sobrevivendo no inferno e o testemunho da precariedade e desigualdade

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Sobrevivendo no inferno e o testemunho da precariedade e desigualdade
ARQUIVO 24/05/2017 CADERNO2 / CADERNO 2 / C2 / USO EDITORIAL RESTRITO / EXCLUSIVO EMBARGADO - Os Racionais MC's durante uma jam session no Red Bull Station, no centro de SP Crédito: Klaus Mitteldorf/Red Bull Content Pool
Leitura obrigatória na Unicamp, Sobrevivendo no inferno aborda questões sociais importantes e como representá-las a partir das suas letras
sobrevivendo no inferno
Racionais

O quadro conjuntural do nosso mercado de trabalho brasileiro é extremamente afetado pela desigualdade de gênero e pela discriminação racial. Infelizmente, tem sido muito lenta a redução das desigualdades entre brancos e negros relativas à progressão escolar e à formação profissional.

A música é, sem dúvida, um forte artefato cultural que contribui na conscientização desse cenário. Com 30 anos de carreira, o grupo Racionais MC’s denunciou em suas letras como, de fato, é precário e desigual a maneira pela qual se efetiva a integração do negro na sociedade capitalista brasileira.

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O grupo de São Paulo fez seu nome no rap nacional tendo como atributo marcante o contorno político das suas letras. Formado em 1988, Mano Brown, DJ KL Jay, Edi Rock e Ice Blue construíram uma estética musical intimamente vinculada com o testemunho da desigualdade brasileira, possibilitando a reflexão sobre condições de construção de um Estado de direito autenticamente justo e democrático.

Por isso, considerei bastante importante a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno na lista de leituras obrigatórias para o vestibular 2020 da UNICAMP. O leitor concorda? Vejamos alguns pontos.

No Facebook do grupo, foi reproduzido um comentário de KL Jay: “‘Sobrevivendo no inferno’ é um ótimo livro de história“. Ano passado, em 2017, o álbum completou 20 anos de lançamento, sendo considerado um grande impacto[i]. Tratava-se do primeiro trabalho do quarteto lançado pelo selo do grupo, Cosa Nostra, com mais de 1 milhão de cópias vendidas, de forma a serem pioneiros na influência direta com o grande público nacional, inclusive a imprensa.

Sobrevivendo no inferno é composto por doze músicas, que se caracterizam pela extensão das letras. Dessas músicas, oito têm mais de seis minutos de duração e duas delas, Tô Ouvindo Alguém me Chamar e Fórmula Mágica da Paz, ultrapassam dez minutos. Essa característica, incomum no rap, valoriza o discurso do grupo e apresenta uma narrativa inovadora sobre o cotidiano da periferia brasileira, em histórias contadas com riqueza de detalhes. Com razão, foi eleito o 14º na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Revista Rolling Stone Brasil.

Em ordem, seguem as músicas com seus respectivos autores:

  1. “Jorge da Capadócia” (Jorge Ben Jor)
  2. “Genesis (Intro)” (Mano Brown)
  3. “Capítulo 4, Versículo 3” (Mano Brown)
  4. “Tô Ouvindo Alguém me Chamar” (Mano Brown)
  5. “Rapaz Comum” (Edi Rock)
  6. “… (instrumental)” (Edi Rock)
  7. “Diário de um Detento” (Jocenir; Mano Brown)
  8. “Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar)” (Edi Rock)
  9. “Qual Mentira Vou Acreditar?” (Edi Rock; Mano Brown)
  10. “Mágico de Oz” (Edi Rock)
  11. “Fórmula Mágica da Paz” (Mano Brown)
  12. “Salve” (Ice Blue; Mano Brown)

 

Racionais lançou álbum ‘Sobrevivendo no Inferno’ em 1997.

Após Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor (1942), do disco Solta o Pavão (1975), é exposto diretamente a marginalização e precariedade social do negro na sociedade brasileira:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial.
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras.
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros.
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo.

Ainda hoje, negros apresentam maiores taxas de desocupação, menores taxas de assalariamento, menor grau de formalização e rendimentos mais baixos. Com isso, o grupo chama a atenção dos governantes a respeito de políticas públicas de promoção da igualdade racial no mercado de trabalho e na existência social cotidiana. As pesquisas de Jessé Souza, como o recente livro Da escravidão à Lava jato, ajudam a compreender a pertinência da crítica social dos Racionais. Para Jessé Souza, não há dúvidas de que a elite brasileira que antes escravizava é a mesma que agora explora o trabalhador:

A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados secularmente pelo povo. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós. Para que se possa odiar o pobre e o humilhado, tem-se que construí-lo como culpado de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador. Se possível, deve-se humilhá-lo, enganá-lo, desumanizá-lo, maltratá-lo e matá-lo cotidianamente. Era isso que se fazia com o escravo e é exatamente a mesma coisa que se faz com a ralé de novos escravos hoje em dia. Transformava-se o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema, como “coisa de preto”, e depois se espantava que o negro não enfrentasse o trabalho produtivo com a mesma naturalidade que os imigrantes estrangeiros, para quem o trabalho era símbolo de dignidade. Dificultava-se de todas as formas a formação da família escrava e nos espantamos com as famílias desestruturadas dos nossos excluídos de hoje, mera continuidade de um ativismo perverso para desumanizar os escravos de ontem e de hoje. [ii]

Assim, o testemunho artístico nas músicas do grupo Racionais cria um espaço político fundamental para apresentar como a violência perpetrada pelo próprio Estado esfacelou os negros, submetendo-os a uma condição precarizada socialmente.

Com efeito, as letras dos Racionais intensificam sua disposição para não ser cordial e desnudar sem medo as contradições da sociedade brasileira. Nesse sentido, é interessante a caracterização feita por Garcia[iii], que descreve o rap dos Racionais como uma espécie de revide, ressaltando seu talento para cantar a violência ao ser contundente, sem cair no melodrama ou no sadismo. Como o próprio Brown explica, o que os Racionais fazem artisticamente é usar a violência contra a violência, buscando a paz de forma violenta.

Na composição Periferia é Periferia, é realizado uma contundente análise das características dos bairros periféricos, apontando a ausência do Estado, os códigos internos impostos que cria poderes em paralelo. Em Negro Drama, criou-se uma contraposição entre o negro e o branco, com citações históricas como dos quinhentos anos de exploração da elite brasileira; no transcorrer da narrativa dessa composição, desenvolve-se a problemática da exclusão racial, a busca por ascensão social e a vida do crime[iv]. Realmente, os negros nunca foram tratados como iguais. A liberdade que receberam com a Abolição foi incompleta.

Há também a crítica ao sistema capitalista, derivado em consumo exagerado que ferra todos nós, negros, brancos e pardos. Essa violência do capitalismo é muito bem sintetizada no seguinte verso: “O ser humano é descartável no Brasil / Como modess usado ou bom bril”. Repare um detalhe caro leitor: modess e bombril são marcas que, por metonímia, passaram a significar os próprios produtos na nossa sociedade — assim, o processo capitalista já vai impresso na linguagem; o ser humano é igualado a absorvente higiênico e esponja de aço, mercadorias usadas por todas as classes sociais.

Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A… ninguém tava numa
Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma
Um jeito humilde de ser no trampo e no rolê
Curtia um funk, jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Exemplo pra nóis… mó moral, mó ibope
Mas começou a colar com os branquinho do shopping
Ai já era… Ih, mano, outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada, vários drinques
Puta de butique, toda aquela porra
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
[…]
Será assim que eu deveria estar?
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho

Os versos das letras de Racionais são a intersecção da experiência individual com a vida coletiva da periferia: “eu não li, eu não assisti, eu vivo o negro drama, eu sou negro drama, eu sou fruto do negro drama”. Portanto, com os rigorosos estudos de Walter Garcia podemos compreender que, “Da escolha das palavras à difusão, todos os elementos do trabalho provocam no ouvinte não apenas sentimentos e sensações, mas reflexão crítica sobre as origens econômicas (capitalismo e generalização da forma mercadoria) e sociais (preconceito e segregação racial) dessa violência, e sobre a sua consequência inevitável (a morte)”[v].

As letras do álbum Sobrevivendo no inferno são fáceis de acessar, assim como é fácil de ouvi-las no Youtube ou no Spotify. Então, leitor, quais são as suas experiências com esse álbum dos Racionais MC’s? Apenas mencionei poucas composições das doze que integram o álbum. Quais das outras músicas (desse ou de outro álbum) você julga importantes para avançarmos em nosso diálogo sobre a desigualdade social e racial em nossa cultura contemporânea?

***

[i] Uma boa matéria com depoimentos pode ser encontrada aqui: http://www.virgula.com.br/musica/20-anos-de-sobrevivendo-no-inferno-artistas-lembram-obra-do-racionais-mcs-a-voz-de-todos/
[ii] SOUZA, Jessé. A Elite da Atraso: da escravidão à Lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 98.
[iii] GARCIA, Walter. Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’S (1990-2006). Indico também a leitura do artigo “O rap contra o racismo: a poesia e a política dos Racionais Mc’s”, de Gabriel Gutierrez Mendes.
[iv] Encontra-se uma descrição mais detalhada das doze músicas do álbum na Dissertação intitulada Racionais mc’s: música, mídia e crítica social em São Paulo, de Anderson da Costa e Silva Grecco.
[v] GARCIA, Walter. Ouvindo Racionais MC’S. Revista Teresa, USP. In: http://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116377.

 

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