As versões de A Bela e a Fera

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As versões de A Bela e a Fera

O que podemos aprender com as várias versões de A Bela e a Fera? O que elas dizem sobre as épocas que foram escritas ou filmadas?

O conto de fadas A Bela e a Fera já foi adaptado para o teatro e para o cinema diversas vezes. Entre as versões mais conhecidas estão as da Disney, sendo o desenho de 1991 e o live action de 2017, e o filme francês de 2014. Porém, é interessante conhecer os contos originais, que datam do século XVIII. Há a versão clássica, mais reduzida, de Madame de Beaumont, publicada em 1756, e a versão original, mais longa, próxima de um romance, de Madame de Villeneuve, escrita em 1740. A história, de mote simples, nos ensina a importância de amar além das aparências, mas também carrega outros valores e ambiguidades.

Primeiramente, é possível apontar alguns antecedentes, conforme destaca Rodrigo Lacerda em seu prefácio à edição da Zahar. No século XVI, chamou a atenção o caso de Pedro González, um espanhol que sofreria da raríssima “síndrome do lobisomem”, cientificamente chamada de hipertricose, caracterizada pelo crescimento anormal de pelos no rosto e em todo o corpo. Considerado uma aberração, aos dez anos de idade ele teria sido oferecido pelo próprio pai ao imperador Carlos V, para figurar na corte como uma criatura exótica. Ao viajar de navio para a Holanda, onde o imperador reuniria sua corte, o menino é capturado por corsários franceses, que o mandam como animal de estimação a Henrique II, monarca da França. Este deseja realizar a experiência de “humanizar” a “criatura”, vestindo-o com roupas nobres e providenciando-lhe a mais refinada educação. Pedro vive, então, na corte do rei francês, onde presta serviços diplomáticos e surpreende a todos com suas habilidades, sendo considerado pela ciência como um caso de evolução da “besta humana”.

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Após a morte de Henrique II, o rapaz torna-se propriedade da rainha Catarina de Médici, que intenta levar a experiência iniciada pelo marido ainda mais longe e casá-lo com uma bela moça. A escolhida foi uma serviçal da corte, considerada a mais bonita do séquito real, também chamada Catarina. A identidade do noivo lhe foi escondida até o último momento e ela teria desmaiado diante dele ao conhecê-lo. Como ele era bem educado, porém, com o tempo a relação entre os dois teria se tornado amorosa. Daí a inspiração para o enredo de A Bela e a Fera, em que uma bela moça acaba desenvolvendo afeto por uma fera, pelo fato de esta ser educada e gentil.

Além da fonte histórica, também existem antecedentes literários. Trata-se do subgênero do conto de fadas intitulado animal bridegrooms, ou noivos animalescos, em que o enredo aborda o tema do amante animalesco e a redenção de sua animalidade com um amor puro. Nesse tipo de história, o protagonista vive uma experiência fantástica, em que deve provar sua pureza de espírito. O noivo ou a noiva animalesca pode representar nosso lado selvagem, que não podemos controlar. O exemplo mais famoso seria Cupido e Psiquê, de Lúcio Apuleio, na Antiguidade.

Consideremos, então, os contos das escritoras francesas no século XVIII. O enredo é idêntico, com exceção da maior riqueza de detalhes apresentada na versão original. Diferentemente dos filmes da Disney, Bela não é filha única. Ela possui irmãos e irmãs. Estas são invejosas e fúteis, tais como as irmãs postiças de Cinderela. Seu pai é um rico comerciante, que de repente se vê na pobreza e é obrigado a se mudar para uma propriedade simples no campo. De todos os irmãos, Bela é a que melhor se adapta, com seu otimismo e prestatividade. Após um ano vivendo no campo, o comerciante recebe uma carta informando que um navio atracou carregando mercadorias suas. Com esperanças de retomar sua fortuna, ele parte em viagem. As filhas logo fazem pedidos, como vestidos, chapéus e etc. Bela, entretanto, não pede nada. Com a insistência do pai, e para não constranger as irmãs, ela acaba pedindo uma rosa.

O senhor vai até o porto, porém não consegue reaver seus bens e acaba perdendo a viagem. No caminho de volta, se perde numa floresta. Encontra enfim um grande castelo, onde se abriga. Sem ver ninguém, ele é agraciado com lareira para se aquecer, um banquete, roupas para trocar e vários tesouros para levar para casa. Ele agradece seu anfitrião desconhecido e se prepara para partir, quando vê uma roseira no jardim. Colhe uma rosa, lembrando-se da promessa feita à filha caçula. Nesse instante, uma fera horrenda salta em cima dele e lhe recrimina por ter arrancado a rosa. A besta diz que o homem deve pagar com a vida, a não ser que ele lhe traga, no período de um mês, uma de suas filhas para se sacrificar em seu lugar. O comerciante se apavora e parte desolado. Ao chegar em casa e contar sua desventura, Bela prontamente se oferece para ir no lugar do pai, que reluta, mas acaba aceitando, ao ver que ela não vai desistir.

Bela chega, então, ao castelo da Fera. Ela se aterroriza com a aparência do monstro e acredita que será devorada. É recebida, porém, com toda a pompa, encontra livros e diversas atividades para se entreter. Toda noite, ela janta com a Fera e esta lhe pede sua mão em casamento (ou para dividir o leitor com ela). Apesar de aprender a apreciar a companhia da Fera, sem beleza nem inteligência, mas bondosa, ela sempre nega o pedido.

Após alguns meses no castelo, Bela sente saudade da família e pede à Fera para revê-los. Ela concede a visita, contanto que volte dentro de oito dias (ou dois meses) ou causará a morte do animal. Assim, a moça volta para a família. Todos ficam contentes em vê-la, menos as irmãs invejosas. Ela avisa, entretanto, que não veio para ficar. Os parentes querem reter sua estadia por mais tempo e ela chega a hesitar entre ficar em casa ou voltar para o castelo. Acaba voltando depois do prazo, e encontra a Fera estirada sobre o jardim, quase sem vida. Atira-se sobre ela e demonstra seu afeto. Então, o castelo se ilumina em festa e a Fera se transforma em um belo príncipe. O feitiço é quebrado. A Bela e o príncipe se casam e vivem felizes durante muitos anos – por que não dizer para sempre?

Na versão de Madame de Villeneuve, são dadas todas as explicações que faltam à versão reduzida. Toda a trama teria sido arquitetada por fadas, uma má que condenou o príncipe a virar Fera, e uma boa que o ajudou a encontrar a moça que poderia quebrar o feitiço. Bela, aliás, seria filha de uma fada com um rei, apesar de ter sido criada pelo comerciante. Também são enfatizadas as diversões que Bela encontra pelo castelo, com direito a teatro, espíritos invisíveis e animais que lhe servem como criados. Nele, enquanto está no castelo, Bela sonha com um lindo rapaz Desconhecido, por quem se apaixona. A princípio, ela pensa que ele é prisioneiro da Fera, até descobrir que se trata da própria Fera, ou melhor, do príncipe aprisionado no corpo da Fera, sem sua beleza e sua inteligência. Ela também sonha com uma Dama que a aconselha a não se deixar guiar pelas aparências e confiar que será recompensada por sua virtude. Trata-se da fada boa. No final, aparecem a fada, a Rainha, mãe do príncipe, o Rei, pai de Bela, e todos são reunidos.

Nos filmes da Disney, há mais elementos mágicos, objetos dançantes, e a figura de Gaston, o bonitão estúpido que Bela rejeita, enfatizando seu desprezo pela futilidade. Há também a rosa, que vai perdendo suas pétalas conforme o tempo passa, e cujo cair da última pétala representa a condenação do príncipe a viver como fera para sempre. O espelho mágico aparece na versão de Madame de Beaumont; por meio dele, Bela consegue ver seu pai sofrendo com sua ausência.

Devemos procurar entender a história e suas adaptações em seus diferentes contextos. No século XVIII, os casamentos por conveniência eram comuns. É possível entender que Bela não se apaixona verdadeiramente pela Fera, mas aprende a admirá-lo por seu bom caráter e aceita ficar com ela por isso. Então, o casamento de conveniência, como foi o de Pedro González com Catarina, pode funcionar, contanto que haja respeito e confiança. O amor seria desenvolvido com o tempo. A versão de Madame de Villeneuve, porém, é mais romântica: Bela de fato se apaixona pelo Desconhecido, sem saber sua identidade, e nutre um sincero afeto pela Fera. Nos filmes, Bela se apaixona pela Fera, gradativamente, e o amor humaniza a Fera, cujo temperamento egoísta e impulsivo foi responsável por sua maldição. Nos contos, o príncipe não era mimado; ele foi condenado injustamente. Os filmes, portanto, são mais moralistas nesse sentido: a maldição tem o intuito de ensinar uma lição ao príncipe. No longa francês, o príncipe teria sido indiretamente responsável pela morte de sua antiga esposa, por conta da obsessão com a caça de uma gazela.

De qualquer forma, todas as versões de A Bela e a Fera são muito bonitas e têm algo a nos ensinar. O que importa, afinal, para o amor, não é a beleza nem a inteligência, mas a bondade. E os virtuosos conquistarão, ainda que a duras penas, sua felicidade.

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Referência:

BEAUMONT, Madame de; VILLENEUVE, Madame de; tradução André Telles; apresentação Rodrigo Lacerda; [ilustração Walter Crane e outros]. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

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