O mal-estar da fragmentação social no poema “O elefante”, de Drummond

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O mal-estar da fragmentação social no poema “O elefante”, de Drummond

No poema “O Elefante”, de Drummond, está presente a coisificação das relações humanas, a qual faz com que os indivíduos se tornem matéria de troca como os bens capitais

O elefante, de Drummond
Carlos Drummond de Andrade, autor de “O elefante”

Impotência e inadequação são apontados como dois mal-estares da nossa sociedade contemporânea. Em seu cotidiano, leitor, já percebeu ou teve a sensação de que a solidariedade social está cada vez mais solapada? Dificuldades, até mesmo incapacidade, de operar efetivamente nas circunstâncias cada vez mais voláteis, nas quais as relações intersubjetivas são frágeis e pautadas por interesses individuais pragmáticos?

Talvez não percebidas, mas impossível de não as vivenciar, afinal, na sociedade capitalista, a coisificação das relações humanas passa a ser a norteadora dos seus indivíduos, tornando-os igualmente matéria de troca como os bens capitais. Tais experiências são radicalizadas pela voz lírica do poema “O elefante”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

“O elefante”, poema de Drummond

Certamente, você já deve tê-lo lido. Pertence à célebre coletânea intitulada A Rosa do povo, que reune poemas escritos de 1943 até 1945, ano em que foi publicada. Trata-se de uma obra decisiva na trajetória de Drummond, na qual é apresentado um lirismo social engajado, criticando a melancolia de um cenário urbano que está em desenvolvimento infra-estrutural junto a tristeza desencantada de sujeitos tornados autômatos pelo processo social (ver p. ex. “A flor e a naúsea”).

A coletânea é composta por 55 poemas. Hoje, quero comentar apenas alguns aspectos do poema intitulado “O elefante” que incitam reflexões sobre o drama do indivíduo moderno e sobre o seu processo de coisificação imposto pela sociedade capitalista. A tessitura do poema em si aparenta ser pouco complexa, construída em sete estrofes irregulares quanto ao número de versos, os quais são brancos e constituídos em redondilha maior. “Fabrico um elefante de meus poucos recursos”, são os versos iniciais do poema, condutor de uma voz poética que observa um elefante, na sua “massa imponente e frágil”, em “passo desastrado”, “à procura de amigos, num mundo afastado que já não crê nos bichos e duvida das coisas”.

Alguns intérpretes consideram o elefante como um símbolo de esperança, mesmo que seja erigido sob bases frágeis. Não tenho tanta certeza quanto a isto. A primeira estrofe é clara sobre a alienação e mecanização de uma atividade de trabalho que subjuga potencialidades existenciais, quando a voz lírica admite “Fabrico um elefante, de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio”. Tal característica se direciona ao que foi proposto pelo filósofo Lukács em relação à evolução do trabalho:

Se perseguirmos o caminho percorrido pelo desenvolvimento do processo de trabalho desde o artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica, descobriremos uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior das propriedades qualitativas humanas e individuais do trabalhador [i].

Essa eliminação das propriedades qualitativas produz, obviamente, a precarização da subjetividade, que se encontra no início da terceira estrofe:

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada

Com isso, a voz lírica pontua a “mínima vida” do elefante, mas que mesmo assim mantem a elegância. Talvez aí não seja necessariamente um horizonte de otimismo/esperança, mas a própria alienação a partir da incapacidade de operar a totalidade social no fundo discursivo da construção poética. Como manter a graça na sociedade fetichizada, que nos leva ao mal-estar da fragmentação? Enquanto o leitor pensa nisso, vamos finalmente ao poema:

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Leitura do poema na íntegra

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

A sociedade retificada e suas relações

Ótimo poema, não é verdade? Parece haver pouca coerência constitutiva nesse elefante, de modo que a evocação de uma sociedade reificada, com as relações tornadas opacas, é o eixo da voz lírica. Recomeça-se todas as manhãs, mas sempre com o eu descentralizado, torto, fragmentando. A vida continua em preocupação e inação, recontada muitas vezes em um marco cognitivo extremamente precário, cujas consequências são situações de anomia e indeterminação em razão da consciência da impossibilidade de garantir a substancialidade de formas tradicionais de vida.

O amanhã como horizonte, como pluralização das possibilidades de escolhas individuais, é mais constante atualmente do que em 1945, quando foi publicado o poema “O elefante”, de forma que isso significaria que essa experiência exposta de sofrimento é mais pungente agora no século XXI? O que o leitor acha?

O filósofo frankfurtiano Axel Honneth não considera que haja um fortalecimento da autonomia e das liberdades sociais por causa da atual pluralização das possibilidades de escolhas individuais:

O resultado deste reverso paradoxal, em que processos que chegaram a prometer um aumento da liberdade qualitativa são doravante alterados em uma ideologia da deinstitucionalização, é a emergência de um número de sintomas como vazio interno, de sentimentos de superficialidade e de falta de propósito [ii].

Para nós, sujeitos, uma das consequências é a anomia como se não tivéssemos ligação com o aparato social que os sustentam, acabando por nos tornarmos inertes ao nosso impiedoso contexto de flexibilização e de desregulamentação de direitos sociais.

***

Referências

[i] LUKÁCS, Georg. A reificação e a consciência do proletariado. In: História e consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[ii] HONNETH, Axel. Organized self-realization: some paradoxes of individualization. In: LINS, Bárbara Buril. O paradoxo do “tudo é possível” quando nem tudo é possível: a etiologia de uma autorrealização organizada. Disponível em: <http://www.nexos.ufsc.br/index.php/peri/article/view/1927/2166>. Acesso em: 4 jul. 2018.

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