Como Sandy ajudou a destruir a adaptação cinematográfica de um grande livro de Mutarelli

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Se na literatura a história de A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli, baseia-se na ambiguidade, no cinema – intitulado Quando eu era vivo (2014), com direção de Marco Dutra – não passa de uma versão anêmica de espiritismo barato

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Sandy Leah e Marat Descartes em Quando eu era vivo (2014)

Após se tornar um dos mais premiados quadrinistas do Brasil, Lourenço Mutarelli publicou em 2002 seu primeiro romance, O cheiro do ralo, que viria a ser adaptado para o cinema pelo diretor Heitor Dhalia, com uma brilhante atuação de Selton Mello, de forma que o filme passou a ser reverenciado nos círculos cults.

Quem acompanha entrevistas de Mutarelli verifica que seu romance A arte de produzir efeito sem causa (Companhia das Letras, 2008) é sempre citado como um de seus livros preferidos. Portanto, nada como esperarmos outra grande história, se adaptada para o cinema. Não que os livros do autor sejam fáceis de adaptar, posto que seus enredos são sempre labirintos de dificuldades com a linguagem. Mesmo assim, após a bem-sucedida empreitada no caso de O cheiro do ralo, as expectativas para a nova adaptação eram altas.

Antes de falarmos do desastre com cooperação de Sandy – cujo último trabalho foi ter deixado de ser a irmã do Júnior e se tornado a garota-propaganda da cerveja Devassa –, listando a série de erros, sintetizaremos do enfoque da história.

A arte de produzir efeito sem causa trata de um filho de meia idade, Júnior, que regressa à casa do pai após uma separação traumática. Para efeitos dramáticos, sua estadia ali será confrontada por alguns eventos interessantes. O pai aluga um quarto a uma jovem universitária da faculdade de artes chamada Bruna – o que se não fosse uma história de Mutarelli, tornaria-se um doce, meloso e irreal caso de amor. Na realidade, há uma tentativa de estupro e outra de homicídio. Junior passa a ser atormentado por vozes em sua cabeça após começar a receber alguns pacotes pelo correio, simulacros para mensagens em inglês e fotos bizarras, algo que só depois, com a ajuda de Bruna, passará a interpretar os significados que, de certa forma, se ligam à sua mãe morta e ao irmão preso. O romance avança em cima de uma ambiguidade precisa: Júnior ouve de fato as vozes/espíritos, sua mãe querendo falar com ele, ou como diagnosticado pelo médico, possui uma doença rara, cujo cérebro vai sendo atacado por um determinado tipo de bactéria?

Procuramos não revelar o final do livro, nem algumas partes da trama, pois cremos que vale à pena o leitor enfrentar e se perturbar com esta obra. No entanto, os fatos apresentados nos permitem partir para o filme.

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Pouco antes de Júnior (Marat Descartes) ouvir Bruna (Sandy) cantar

Considerada a parte técnica, é uma ótima produção, com uma fotografia que merece ser citada. E a trilha sonora, quase toda ela, funciona muito bem. Quase. Na altura do minuto sessenta de Quando eu era vivo, já envolvidos pela trama de suspense, o desastre se revela. Até então, o fato de Bruna (interpretada por Sandy) no filme ser uma estudante de música, em vez de desenho tal qual no livro, não parecia algo relevante. É neste ponto em que, ao ficar só ela e Júnior (Marat Descartes) no apartamento, uma das cenas mais importantes da obra escrita, Bruna diz que vai cantar uma de suas composições. Ou seja, Sandy vai cantar uma de suas composições. O que acontece é o mesmo que interromper um concerto para cantar uma cantiga de ninar, tamanha a disparidade. Se não bastasse isso, a cena que no romance representa a perda total da confiança de Bruna em Júnior se transforma, na versão cinematográfica, no momento em que Júnior convence Bruna de que sua mãe morta quer falar com ele, posto que pede a inquilina de seu pai pela interpretação de uma partitura deixada pela velha.

A cena é um marco, tanto pelo destoar do canto de Sandy (que ainda cantará mais duas músicas), quanto por uma tentativa de apresentar no filme um ocultismo caricato ou, ainda pior, um espiritismo anêmico. Nada da ambiguidade deslumbrante do livro.

O pior de tudo é que a obra tenta se levar a sério. Se tivesse se tornado uma comédia, tudo bem. Talvez o menos ruim tenha sido a atuação de Antônio Fagundes como Sênior, pai de Júnior. Não possui o mesmo humor grosseirão do personagem do romance, mas ainda assim consegue se segurar. Contudo, o roteiro o tornou vítima de uma aberração narrativa. Elevou-o ao nível de problema da história, como se ele fosse culpado pelo filho mais velho, Pedro, preso e por Júnior caminhar para a loucura.

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VHS da mãe de Júnior fazendo as cabeças de gesso quando ele e o irmão ainda são crianças

No enredo trôpego do filme, a mãe de Júnior, praticante de ocultismo, teria feito cabeças de gesso (mais semelhantes a máscaras) dos dois filhos e consagrado aos santos. E o velho Sênior por ser recusar a deixar que fizesse da sua, considerando tudo superstição, seria o motivo das assombrações maternas. O imbróglio piora quando Bruna, ou melhor Sandy, posto que pouco se vê de atuação, acha no colchão em que dorme um anel que teria pertencido à mãe de Júnior. Ou seja, ela passa a ajudar o maluco assumindo a função da velha bruxa e culminando num final em que Júnior amarra o pai a uma cadeira… segurem-se vocês para tão glorioso final, faz a cabeça de gesso do pai enquanto canta com Sandy a sofrível cantiga de ninar. Risível. A máscara é feita, o pai é solto e todos ficam felizes para sempre.

Você acha que a tortura acabou? Não, Sandy ainda canta outra música enquanto os créditos sobem.

Lembro de uma fala de Lourenço Mutarelli no palco do 2º Festival Literário de Extrema: “você passa cinquenta anos estudando música pra ver a Sandy cantando no filme que fizeram do seu livro.”

Nem um espectador otimista como eu, quando se trata de produções nacionais, em uma tentativa de incentivar o mercado cinematográfico, consegue alçar o filme à altura de merecer o nome do Mutarelli nos créditos (curiosidade: ele faz uma ponta no filme como motorista, mas sem o mesmo brilho de sua atuação em O cheiro do ralo, como segurança). Quando eu era vivo é classificado como suspense, porém se olharmos para os últimos anos de nossa produção brasileira, não chega nem aos pés de filmes como: O lobo atrás da porta (2013) e O invasor (2001). Pesa contra ele os problemas de roteiro, os quais aparentam ter aberto mão de vários artifícios narrativos funcionais do livro, e sem qualquer justificativa a atuação de Sandy, como Bruna.

Ainda assim, sempre há o livro.

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Cena em que o autor do livro, Lourenço Mutarelli, aparece na adaptação atuando como motorista

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