Uma comparação entre as escolhas feitas por um escritor de contos policiais e um diretor de cinema, ao contarem a mesma história
Talvez um dos detalhes mais interessantes da carreira do diretor inglês Alfred Hitchcock é que quase todos os seus filmes são adaptados de livros. Foi assim com Psicose, Os pássaros, A sombra de uma dúvida, entre outros. Uma de suas obras mais apreciadas artisticamente – ainda que Hitchcock dissesse que enquanto outros diretores faziam arte, ele fazia bolo – é Janela Indiscreta (1954). Como não poderia ser diferente, adaptada do conto de Cornell Woolrich.
Woolrich estudou jornalismo na Universidade Columbia, mas desistiu do curso diante do sucesso que seus contos faziam. Depois de convidado a adaptar uma de suas histórias para o cinema, passou a escrever roteiros para Hollywood. Além de Hitchcock, o diretor francês François Truffaut também adaptou para o cinema um de seus textos, A noiva estava de preto.
O conto
Em Janela Indiscreta, conto que remete ao gênero policial, ainda que neste caso não seja um detetive quem resolve o crime, temos um solteirão com a perna quebrada que passa seus dias de recuperação em uma janela observando a vizinhança. Ao notar a rotina de um de seus vizinhos, um vendedor que tem a mulher inválida em casa, percebe que de um dia para o outro a esposa desaparece. Daí em diante, o conto se torna a difícil tarefa deste homem que tudo observa em provar o crime.
Ao resumir assim em linhas gerais, parece uma história muito simples. No entanto, narrada à maneira intimista de Cornell Woolrich, temos o conceito de “ação retardada”. O personagem sempre pressente que algo está errado, seu instinto diz isso a ele, mas seu racional demora a unir as peças, como podemos ver neste trecho: “A impressão afundou no meu subconsciente, para ali fermentar, como levedo, enquanto eu voltava a tratar do problema principal” (pg. 36). Sua astúcia também é demonstrada em contraste com seu enfermeiro, um tal de Sam, sobre quem pouco sabemos, a não ser se tratar de uma pessoa comum, quase elementar. No confronto final, inevitável, o criminoso tenta matar o protagonista, mas é ludibriado, pois em seu lugar na cadeira, deixou o busto de um escritor francês clássico.
O filme
Nas entrevistas que concedeu a François Truffaut, Hitchcock confessou o porquê de ter decidido adaptar este conto para o cinema:
“[…] você tinha a possibilidade de fazer um filme puramente cinematográfico. Você tem o homem imóvel que olha para fora… É um primeiro pedaço do filme. O segundo pedaço mostra o que ele vê e o terceiro mostra a reação dele. Isso representa o que conhecemos como a mais pura expressão da ideia cinematográfica.” (pg. 213).
Interessante que, apesar de tal argumento, o diretor inglês fez uma série de mudanças na história em relação ao conto original. O protagonista, interpretado por James Stewart (um astro do cinema da década de 60), é sim alguém que se recupera da perna quebrada, mas no filme sabemos o motivo. Hitchcock não precisou de um diálogo para explicar isso. Após a cena de abertura, vemos uma câmera fotográfica quebrada, uma série de cenas de carros de corrida, e intuímos que o personagem na verdade era um fotógrafo. Portanto, nada mais correto do que ele olhar a vizinhança a partir de sua janela com uma teleobjetiva profissional de fotografia. Também diverge o que ele vê. Enquanto no conto temos apenas brevemente um vislumbre das outras histórias da vizinhança, no filme vemos vários outros enredos dos apartamentos à frente: um casal que dorme na varanda; uma mulher que se arruma todos os dias para receber um amante, mas ele nunca vem; um casal jovem que vive com as janelas trancadas, sempre transando; um músico solitário que compõe; uma dançarina que é paparicada por inúmeros pretendentes. O resultado é um mosaico humano sobre o amor.
Guardei o melhor para o final. James Stewart não é a única estrela do elenco do filme. A atuação de Grace Kelly é digna de um Oscar. Na versão hitchcockiana de Janela indiscreta, o protagonista também enfrenta seus problemas amorosos. Ele quer sua liberdade, que acha apenas possível longe do casamento. Ela, apesar de bem-sucedida profissionalmente, quer este homem ao seu lado. E até ajuda-o a desvendar o crime, cujo embate derradeiro tem uma diferença crucial. Nosso observador inválido enfrenta o assassino com os flashes de sua câmera.
Tanto no cinema como na literatura, esta história vale a pena ser conhecida. Ambas são exemplos de esmero na arte narrativa. Procurar dizer qual das duas é melhor parece perda de tempo. Ainda que seja interessante ver estes amores e assassinatos abordados de formas diferentes.
Referências:
TRUFFAUT, François; SCOTT, Helen. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WOOLRICH, Cornell. Janela indiscreta e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.