
O Tribunal de Quinta-feira, romance de Michel Laub, expõe as ambiguidades dos julgamentos morais da nossa época, potencializados pelas relações virtuais

As mudanças nas relações sociais com o advento da internet foram profundas. A forma de fazer amigos, namorar, debater, divertir-se, entre muitos outros itens, não é mais a mesma de duas décadas atrás. Era inevitável que, dentro desse processo de mutação, exageros surgissem. Quem nunca foi criticado por um post? Quem nunca ouviu sobre casos de pessoas que tiveram sua vida revirada por algum tipo de exposição indesejada nas redes sociais? Pois tal realidade, ainda tão nova e tão confusa, é o tema de O tribunal da quinta-feira, do escritor Michel Laub.
José Victor, um publicitário quarentão, é o protagonista da obra. O momento presente da narração está situado quatro dias depois do vazamento de alguns de seus antigos e-mails para o amigo Walter. O que poderia ser algo inofensivo e de interesse absolutamente localizado, porém, torna-se uma bomba quando as mensagens nos vão sendo reveladas, acusando um tom de brincadeira chula entre amigos que ganha contornos de seriedade para os leitores descontextualizados. Walter é soropositivo e sua personalidade mordaz faz com que as interações entre os dois homens sejam debochadas e exageradas, numa tentativa desajeitada de lidar com o fantasma aterrorizante da doença.
Remetente: eu. Destinatário: Walter. Data: 31/1/2016. Trecho: Teca está viajando. Estou pensando em convidar a vítima redatora-júnior para contrair A.I.D.S. / S.I.D.A.
O alegado tribunal do título nada mais é do que o conjunto de pessoas que reagem a essas mensagens dentro da obra – conhecidos e desconhecidos de toda sorte – mas, em última instância, engloba nós mesmos, os ilustres leitores. Nós também somos parte do júri que avalia cuidadosamente as palavras escolhidas pelos dois amigos de longa data para referir-se a questões difíceis, potencialmente incômodas e delicadas, e toma partido. Trata-se de um ponto instigante da construção da trama, em que o narrador em primeira pessoa passa a se dirigir diretamente a esse seu tribunal abstrato, e rapidamente sentimos que ele também está dialogando, de certa maneira, com cada um de nós.
Desculpem os presentes no tribunal, mas é impossível seguir fazendo a minha defesa sem voltar ao tema da hipocrisia. Eu não gosto de cumprir esse papel, assim como ninguém dirá que gosta, mas não há alternativa além de enfrentar aquela que iniciou a cascata de acusações.
A alfinetada do autor, aos poucos, vai ficando evidente: por que as pessoas se sentem tão à vontade no papel de acusação? A quem cabe julgar os comportamentos do outro? José Victor está longe de ser um santo, como vai ficando claro no romance. A deslealdade prolongada com a ex-mulher, um dos elementos expostos nas mensagens, não passa batida por ninguém (inclusive por ele mesmo). No entanto, o protagonista devolve na mesma moeda, trazendo a esse júri imaginário e magnânimo informações sobre as ideias e comportamentos de Teca que minimizam o seu papel de vítima ilibada. O publicitário expõe a hipocrisia da moça como forma de ironizar o seu julgamento, tal como um Bentinho menos investido em disfarçar o seu intento, trazendo à mente do leitor a famosa máxima bíblica: “aquele que não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Teca também angariou com o tempo a sua gama de pecados, assim como suas amigas, os colegas de agência de José Victor – enfim, todos têm os seus segredos e deslizes. A obra transmite a simplicidade com que tudo isso é convenientemente ignorado por esse tribunal diante das supostamente ofensivas intimidades vazadas.
O lado correto desta briga, Teca pode ficar tranquila a respeito, não é o dos aposentados, pregadores religiosos e integrantes de torcidas organizadas que se manifestaram logo depois do vazamento. Foram dezenas, centenas deles. […] A polícia poderia abrir um inquérito e rastrear os comentários, o Ministério Público poderia processar os autores das ameaças e os levar à prestação de serviços comunitários, mas isso não livraria Walter e eu de enfrentar o lado em que Teca está na briga. É esse lado que me trouxe ao tribunal. Todos imaginamos fazer parte dele, nós que somos a favor da tolerância, do equilíbrio, da solidariedade que é tão fácil declarar, então uma briga com quem fala em nome de tudo isso não deixa de ser uma briga com você mesmo.
A situação lembra a do romance de Milan Kundera, “A brincadeira”, em que o estudante Ludvik é duramente punido por uma piada feita num pedaço de papel ironizando o partido comunista checo. No caso de Kundera, porém, o carrasco é palpável, conhecido; no caso de Laub, o carrasco pode ser qualquer um de nós. A força do julgamento moral foi diluída com o alcance da conectividade em rede, a ponto de ser fácil e cômodo transformar-se em juiz quando convém (e apenas quando convém). É uma crítica aguda e pertinente aos exageros de nossos tempos.
Para além disso, embora ainda dentro da mesma temática, a obra toca num ponto de mais difícil apreensão a uma primeira vista: as diferentes percepções, em constante mutação, a respeito da privacidade. Para as gerações que viram a internet surgir, como a do protagonista, o vazamento das ironias e brincadeiras com o amigo são um tiro no peito. Elas revelam informações sensíveis sobre o próprio José Victor, sobre o amigo Walter, sobre a ex-mulher, Teca, e sobre a atual namorada, Dani. Muitas pessoas são impactadas socialmente pelo ocorrido e, no entanto, lidam com elas de forma bastante diferente.
O ex-casal, vindo de um entendimento de outros tempos sobre o íntimo, o secreto, o privado, sente com força o amargor das revelações, trocando farpas e acusações num confronto adiado, destilando raiva e indignação pelo que nunca esteve às claras dentro do próprio relacionamento – e que acabou sendo catapultado ao mundo para fins de escrutínio coletivo. Teca claramente sente a humilhação da posição em que se encontra e, por isso, suas ações são compreensíveis a um leitor mais velho. Seriam, porém, a um mais jovem? Alguém mais habituado à rapidez com que os escândalos surgem e desaparecem nessa era atual? A culpa que José Victor carrega, principalmente com relação a um grande segredo de Walter que é revelado, ainda seria tão pesada para um jovem nascido no século XXI? Essas perguntas pouco óbvias são tateadas por meio da figura da jovem namorada do protagonista.
Dani, a redatora-júnior da agência de publicidade, é uma moça solta e segura de si. O que poderia ser simplesmente um relacionamento clichê, como o próprio narrador aponta, em determinado momento, entre um homem de meia-idade e uma jovem iniciando a sua vida, ganha contornos de maior complexidade quando José Victor revela ao leitor algumas de suas fantasias reprimidas que ela passa a atender. Não se trata, portanto, somente do prazer de ter a beleza da juventude ao seu alcance, mas do prazer de descobrir, em alguém de uma outra geração, um grau de liberdade sobre si, seu próprio corpo e seus próprios desejos que a geração anterior talvez ainda não tivesse conseguido alcançar. Tabus para um homem de quarenta anos crescido na década de oitenta não incomodam essa mulher de vinte, e tamanha naturalidade para lidar com os julgamentos alheios, num texto em que esse é o mote principal, ajudam a compor um panorama interessante. Ao mesmo tempo em que a modernidade traz novos percalços, traz também uma nova geração que não se deixa afetar tanto por eles. Dani é uma representação alegórica dessa esfíngica figura feminina que, como na história de Édipo, se coloca diante do protagonista atarantado e anuncia: “decifra-me ou devoro-te”.
Nas semanas seguintes ao primeiro encontro, Dani e eu seguimos testando os limites do que começou a soar como uma possibilidade única, o diálogo do balcão colorido reiterado com pequenas variações: Dani me contava como era fácil manipular os outros figurões da agência ao vestir uma camisa sem sutiã, eu explicava como seria fácil tomar um drinque com qualquer uma das redatoras em situação financeira e emocional vulnerável, e ela dizia que apostar como a filha da cabeleireira será promovida e o diretor de criação acabará motivo de piada, e eu perguntava é assim que você vai me punir por eu ter sido tão bonzinho, e ela respondia eu é que preciso ser punida porque um dia vou constituir um advogado e arrancar o seu último centavo. E quando chegávamos ao motel que passamos a frequentar […], nesse momento à noite eu dizia a ela, agora você vai tirar a sua roupa.
Apesar da temática aparentemente menos universal que este romance apresenta, outros elementos recorrentes na obra de Michel Laub continuam presentes: o estilo, com as repetições de conectivos para enfatizar determinadas ideias; os períodos longos, sem pausas, para sugerir a reflexão mental acelerada da personagem; as experiências de adolescência, moldando os adultos apresentados; as reviravoltas pontuadas em finais de capítulo; e os cortes bruscos entre trechos do narrador e de terceiros, a fim de demonstrar, de maneira contundente, o que vai sendo afirmado. É uma voz própria, que foi sendo refinada ao longo dos romances do autor e que certamente será percebida (e apreciada) pelos leitores de seu texto mais conhecido, o Diário da Queda.
Em tempos de moralização digital e obsolescência quase que imediata das pessoas e de seus comportamentos, trata-se de um livro que questiona a melhor forma de lidar com um mundo que escapa, no seu emaranhado virtual, a qualquer tipo de controle.