A obra O cinema no Século, de Paulo Emílio Sales Gomes, leva seus leitores a pensarem sobre as particularidades do cinema e sobre o papel do crítico desta sétima arte
Quem se importa com o crítico de cinema? Quem está interessado na leitura de uma resenha publicada nas dicas de sexta, ou no suplemento de domingo?
Essa reflexão surge após ler O Cinema no Século (Companhia das Letras, 2015). Fascinante reunião de textos do professor Paulo Emílio Sales Gomes, que tanto apreende o pensamento de seu autor, pioneiro da crítica cinematográfica brasileira, como expõe que o cinema já possuiu um espaço significativo, e até propositivo, dentro de periódicos nacionais.
Paulo Emílio fundou o curso de Cinema na Universidade de Brasília (UnB), e também participou da criação da Cinemateca Nacional. Mas, acima de tudo, foi um difusor e incentivador do cinema no Brasil, se valendo da escrita como forma de alcançar seus objetivos – o que lhe impôs o rótulo de “crítico”, o que talvez não fosse o mais adequado para quem contribuiu de formas tão variadas.
Paulo Emílio se interessava pelo cinema porque o cinema interessava a toda gente
(p. 12 – pósfácio por Carlos Augusto Calil).
Pensando que seu formato original era o jornal, os textos são breves, porém menos urgentes do que uma resenha feita para o circuito comercial do final de semana, já que há um trabalho evidentemente intelectual que precede o texto em si, resultando numa produção de maior fôlego no campo da crítica e estudo cinematográfico. E será justamente por esse fator que O Cinema no século se diferencia dentro daquilo que propõe, e ainda se transforma num vício para qualquer cinéfilo.
Para que o livro fique ainda melhor é preciso que o leitor domine algumas sinopses, para não sentir-se perdido em meio a tantas referências trazidas por Paulo Emílio. E, se a leitura for “profissional”, o ideal é fazer uma retrospectiva dos filmes que ele cita – acessados facilmente num índice onomástico ao final da edição.
Caso o leitor não se enquadre em nenhum desses cenários, e estiver simplesmente com vontade de descobrir o que tem nessa produção crítica sobre o cinema, vale do mesmo jeito. Textos como os que falam de Chaplin ou Orson Welles são universais, pois além de exporem referências para entender o próprio século XX, ainda trazem um sentimento de admiração que parece muito caro ao autor, deixando o material ainda melhor.
Já abordagem ao cinema espanhol, e principalmente o japonês, é de um estudioso que tenta ser acolhido mais pela curiosidade exótica do que pela contribuição artística desses países – como é o caso da invenção da figura do Benshi (narrador de filmes) no Japão. Em relação às produções italianas Gomes traça análises clínicas, e no que se refere ao cinema francês escreve com um domínio quase íntimo do que foi feito até o momento – lembrando que é dele um criterioso estudo acadêmico sobre a obra de Jean Vigo.
A influência direta a é da Cahiers du Cinéma. Paulo Emílio vê em Andre Bazin, mentor dessa revista, um modelo, o que se comprova até no repertório de preferências e críticas com abordagens negativas – a maneira “torta” com que olha o cinema italiano, então.
Levo o cinema a sério porque o considero uma arte. O cinema é uma arte porque possui um meio próprio de expressão. O cinema refaz, estiliza e exprime a realidade por meio de imagens em movimento e sucessão. (p. 176)
Para o brasileiro, assim como ensinou o francês, o cinema é uma arte passível de estudo científico crítico, com teoria e método consolidando a abordagem a ser feita. Com isso em mente, o interesse central está em como foi construído um texto visual dotado de técnicas da ordem da escrita, da fala, do olhar, do compasso de uma edição/corte, da sonoridade, enfim, daquilo que o artista possui como recurso subjetivo para conceber uma proposta que foi pactuada com quem assiste – o que leva a uma premissa essencial, de que o cinema é sempre uma forma de interação com o social.
E aí está a grande contribuição de Paulo Emílio: o esforço intelectual de dotar a crítica de sentido histórico, concebendo circularidades sociais e culturais que dão a ver resultados que atravessam tanto a obra e sua concepção, como sua correspondência com a realidade objetiva. Com isso, a sua resenha cinematográfica ganha dimensão social, criando textos permeados por uma sensibilidade histórica latente.
É desse exercício que surge algo como “Carlito em Ribeirão”, que aborda o impacto do cinema chapliniano (em especial Tempos Modernos) na cidade de Ribeirão Preto, que é “ligada a imaginação do café”; ou então a apreensão que faz de um filme como O nascimento de uma nação (1915) na sociedade americana no início do século, encontrando circularidades entre filme, a criação da KKK e uma peça teatral chamada The Clansman. O que dizer então da leitura social que faz de A Regra do Jogo (1939) em “A outra face de Jean Renoir”, que vira uma aula de História sobre a sociedade francesa?
O cinema exige das imagens e cenas, tomadas isoladamente, uma certa imperfeição. Uma imperfeição que apela para a imagem seguinte e assim por diante. (p. 108)
Buscando um diálogo direto com leitores do Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo, seus textos não podem ser considerados de difícil acesso ao público médio, mas certamente são pensados para uma fatia intelectualizada da sociedade, por isso reduzida e não exatamente formadora de longas filas nas calçadas dos cinemas. Isso não pode ser perdido de vista, até mesmo porque os textos escolhidos estão de sobremaneira direcionados a um tipo de produção cinematográfica, o que além de criar invisibilidade a outras propostas de abordagem dessa arte, encaminha o diálogo com determinado público (urbano, classe média com acesso cultural irrestrito).
E daí cabe a única ressalva a essa edição, que deu a Paulo Emílio Sales Gomes uma imagem de intelectual elitista, deixando de lado o quanto foi influente no âmbito da produção nacional de caráter popular, divulgando filmes de toda ordem nas instituições que participou. Ou então o papel que exerceu para a consolidação de uma proposta cinemanovista e, por fim, o livro Cinema, trajetória no subdesenvolvimento, editado Paz em Terra em 1986.
O cinema no século foi organizado por Carlos Augusto Calil, sendo que Adilson Mendes colaborou na edição do material e nas notas. A maioria dos textos faz parte de sua produção na década de 1950, com maior ênfase nos últimos três anos dessa década, porém também existem trabalhos publicados pela Revista Clima, Jornal da Tarde e Jornal do Brasil.