Talvez antes até do que na sociedade, a mulher já havia conquistado seu lugar na literatura. E o Homo Literatus apresenta uma coletânea de grandes personagens femininas
Tolstói descreveu a mulher como uma: “substância tal, que, por mais que a estudes, sempre encontrarás nela alguma coisa totalmente nova”.
E claro que a literatura não poderia deixar de revelar esta faceta múltipla da humanidade, que são as mulheres. Personagens que nos emocionam, confundem-nos, pelas quais nos apaixonamos, tal qual Flaubert ao se defender em tribunal, quando perguntado quem era sua a sua protagonista, dizendo: “Ema Bovary sou eu”.
São razões suficientes para os colaboradores do Homo Literatus montarem uma lista de personagens femininas inesquecíveis da literatura, conscientes de que muitos nomes importantes acabariam ficando de fora. Apenas para citar alguns (que aqui fazemos menção honrosa): Anna Karenina, Clarissa Dalloway, Jane Eyre, Marcela (Memórias Póstumas de Brás Cubas), Catherine (Adeus às Armas), Julieta Capuleto, Carlota (Os Sofrimentos do Jovem Werther), Sônia (Crime e Castigo), Annabel Lee (Manuscrito), Lolita e Emma Zunz.
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Mas aproveite para conhecer, lembrar e amar estas grandes personagens!
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Daenerys Targaryen, de George R.R. Martin em: Crônicas de gelo e fogo
Quando o assunto é fantasia moderna, poucas personagens femininas são tão importantes quanto Daenerys Targaryen, das famosas Crônicas de Gelo e Fogo do escritor americano George R.R. Martin. O autor é conhecido por criar personagens femininas fortes de uma forma bem natural, sem masculinizá-las (erro muito comum entre os autores do gênero) e é com Daenerys que ele dá seus voos mais altos (às vezes literalmente).
Começando como uma personagem fraca e indefesa que é abusada física e psicologicamente, chegando a ser vendida como uma mercadoria por seu irmão, vai extraindo lições dos espinhos da vida e mostrando a sua força, assumindo pouco a pouco o controle de um mundo até então dominado pelos homens. Tudo isso sem perder a sua feminilidade.
– Por Gabriel Gaspar
Tereza, de Milan Kundera em: A Insustentável Leveza do Ser
Se fossemos definir em uma palavra quem é Tereza, personagem criada por Milan Kundera para estrelar “A insustentável leveza do ser”, dificilmente escaparíamos de “intensidade”. Tereza é uma mulher sensível e forte ao mesmo tempo. Carrega dores e traumas. Chora e sofre por ciúmes. O maior defeito de Tereza é amar demais. O amor, em demasia, entra em seu inconsciente durante a noite e a faz sonhar com todas as traições (ou “amizades eróticas”) de Tomas, seu parceiro. É uma personagem que tem o costume de se observar durante um longo tempo na frente do espelho – não pela vaidade, mas para descobrir-se além da imagem. Não é possível classifica-la como “peso” ou “leveza”, termos que perpassam por toda a obra de Kundera. Tereza permeia entre os dois estados, num emaranhado de contradições que a tornam uma mulher fascinante, instigante e, consequentemente, apaixonante. Tereza é dolorosamente humana.
Por Marcela Güther
Nastácia Filíppovna, de Fiódor Dostoiévski, em O Idiota.
Nastássia Filíppovna é a personagem feminina principal de personalidade atuante pela qual o príncipe Míchkin se apaixona, assim que depara com a beleza estonteante da mesma na casa dos Epantchin. A personagem, junto com sua irmã, é amparada por Tótski, onde recebe os cuidados e educação necessários para sua formação. Atingindo a maioridade, tem tudo para ter um futuro brilhante pela frente. Mas, talvez, movida por uma paixão não correspondida por Tótski, que se casa com uma das Epantchin, se torna numa mulher volúvel que enche os olhos do príncipe de profunda comiseração, redimindo assim, toda a sua trajetória de maldade e volúpia.
Nastássia Filíppovna é, de certo modo, uma sombra de Maria Madalena, assim como o personagem principal, príncipe Míchkin, o é de Jesus Cristo. Pela trajetória de abandono, pela veleidade de seus atos, pelo próprio desprezo que nutria pelos homens e por si mesma.
Por Márcio Ahimsa
Molly Bloom, de James Joyce em: Ulysses
No Ulysses, de James Joyce, Molly é mencionada com frequência por Leopold, e por longos dezessete capítulos ele é a única fonte de informação sobre ela. Parece uma figura distante e quase inalcançável, embora muitos a conheçam de vista, mas mesmo ouvindo tanto sobre Marion ela soa distante. Até o décimo-oitavo capítulo: Penélope. O capítulo conclusivo de Ulysses é todo Molly Bloom, cuja mente é apresentada pela própria em um ritmo acelerado, como se ela estivesse empilhando comentários prosaicos com alguém a ouvindo durante o preparo do jantar. A vizinhança, as vidas se formando e deformando, os parentes e amigos cujos hábitos por vezes a enjoavam, o marido, as ambiguidades ditas e desditas Dublin afora, nada escapa da sinceridade devastadora da madame Bloom.
E sem querer, Molly Bloom proporciona um passeio pela pluralidade da alma humana, amarrando explicações inconclusas durante Ulysses, apresentando uma história dentro da principal simultaneamente enquanto a completa, fios amarrados de uma história começada anos atrás, ao sentir um pulso. É ela quem conta: “e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim” (p.1106).
– Por Walter Alfredo Voigt Bach
Daisy Buchanan, de F. Scot Fitzgerald em: O Grande Gatsby
É difícil falar de forma imparcial de Daisy, interesse romântico de Jay Gatsby. Mimada, manipuladora e egoísta, ela usa sua beleza para garantir que tudo seja feito do seu jeito. No entanto, a confissão que faz a Nick Carraway, quando diz que torcia para que a filha fosse uma “bela tolinha”, por que isso era o melhor que uma jovem poderia ser, não deixa de ser uma cutucada. Daisy luta com os ardis que tem e tolera as infidelidades constantes de Tom Buchanan, um marido perfeitamente respeitável pela sociedade, mas que pouco lhe oferece. O próprio Gatsby a fez esperar por anos, deixando claro o quanto as mulheres eram pouco agentes de suas vidas ainda no século 20. Mais do que amor ou ódio, Daisy precisa de compreensão
– Por Cecilia Garcia
Nina, de Lúcio Cardoso em: Crônica da Casa Assassinada
Não bastasse esse ser um dos livros mais importantes da literatura nacional, ainda apresenta essa personagem inesquecível. Ela é descrita como uma mulher de uma beleza rara, ofensiva até, para os padrões da cidadezinha do interior de Minas Gerais, onde a família Menezes tem poder e influência. Misteriosa e sedutora, num primeiro momento é reprimida pelo silêncio e monotonia da chácara da família, mas vai aos poucos descobrindo onde encontrar aliados e termina funcionando como um anjo exterminador. Mas seu grande feito não é destruir uma família que se mantinha apenas de aparências; ela comete o pecado supremo como ato de desobediência. Esse pecado serve como instrumento de destruição. Ela é capaz de transformar o amor em um ato de morte, de usá-lo para ferir, ao mesmo tempo que faz da morte (o pecado) um ato de amor. Nina é a prova de que a beleza e as mulheres não podem ser possuídas.
– Por Marcelo Gabriel Delfino
Tristessa, de Jack Kerouac em: Tristessa
Desequilibrada e viciada, Tristessa é uma das personagens mais pulsantes e imprevisíveis da vasta cartela de personagens inexoravelmente humanos criados por Jack Kerouac, autor de On The Road, entre outras obras. Na novela que leva o nome da personagem, Tristessa é uma prostituta mexicana, uma junkie decaída, buscando a todo momento descolar a próxima dose de morfina na Cidade do México. Vale acrescentar que tudo que se sabe sobre Tristessa, pelo leitor, é descrito pelo jovem poeta americano Jack, um apaixonado que eleva sua linguagem ao nível do absurdo poético ao descrever esta prostituta.
– Por Vilto Reis
Capitu, de Machado de Assis em: Dom Casmurro
Maria Capitolina Santigo, mais conhecida como Capitu, é a personagem feminina que dá o tom ao clássico Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis. Nele encontramos a envolvente e dependente história de amor entre a grande mulher e Bentinho, que se conhecem desde a infância e, com o passar do tempo, descobrem o mundo e a si mesmo em uma relação de constante desconfiança e possessividade. A notabildade de Capitu quanto mulher é observada desde muito cedo na narração, o que mostra quão avassaladora a personagem esculpida por Machado é. Seus olhos de ressaca que afogaram Escobar e Bentinho são marca na história da Literatura e fazem uma perfeita metáfora com seu ser: basta imergir-se naquele mar esverdeado por muito tempo para esquecer de si até tornar-se inconsciente e nada mais ser. Moderna para uma figura surgida em 1899, Machado personificou em Capitu valores absurdos à época, tais como o adultério e a exploração da sensualidade feminina.
– Por Sofia Alves
Emma Bovary, de Gustave Flaubert em: Madame Bovary
A personalidade complexa de Emma Bovary é belamente desenvolvida por Flaubert em sua obra prima. Ao mesmo tempo sonhadora, delicada, culta e fascinante, ambiciosa, dramática, egoísta e ingênua, Emma representa a classe burguesa entediada, a mulher em cativeiro e as ilusões românticas. Incapaz de ser feliz no amor, seja com o marido ou com os amantes, presa fácil de aproveitadores, vítima de uma sociedade hipócrita e causadora de sua própria desgraça, a personagem encontra em seu fim trágico mais do que uma punição, uma libertação, simbolizando a queda do Romantismo, o massacre dos sonhos da juventude.
– Por Nicole Ayres
Hermione, de J.K. Rowling em: Harry Potter
Nome inspirado em Shakespeare (Conto de Inverno) e também na forma feminina pré-Grécia do Deus Hermes, que entre outros atributos era a divindade da magia. Hermione Jean Granger é uma dos três protagonistas da saga que marcou a última geração de leitores, Harry Potter. Personagem marcante por sua coragem, idealismo, inteligência e determinação. Acreditava que todo o conhecimento necessário seria fornecido pelos livros. É a grande responsável pela liga tão forte do trio de heróis. A adaptação do cinema não fez justiça a sua essência. Os leitores, contudo, puderam crescer junto com a personagem ao longo dos sete volumes da autora J. K. Rowling. Hermione caracterizou muito bem os problemas típicos de uma estudante – de magia. Além do mais, precisou exercer a amizade em níveis sequer imaginados. Talvez, o que nos encanta nessa personagem de literatura fantástica seja o fato dela também ter pais trouxas, como nós. O carisma da personagem e empatia imposta aos leitores fez de Hermione a 2ª personagem mais popular da saga, perdendo apenas para Severo Snape – pesquisa feita pela editora Bloomsbury, Lovefilm e associação Filmclub.
– Por Maik Anderson Barbara
Macabéa, de Clarice Lispector em: A hora da estrela
Através de Macabéa, podemos, assim como o narrador de A hora de estrela (Clarice Lispector, 1977), liberar o grito de horror a essa vida que tanto amamos. Datilógrafa virgem, vestia-se todos os dias de si mesma e representava, obediente, seu papel de ser. Não era idiota, mas carregava em seu peito a felicidade dos idiotas. A história dessa nordestina é uma pergunta. Com toda a sua “indiferença” a si mesma (apenas vivia, inspirando e expirando), Macabéa desperta o leitor para o seu próprio eu. Afinal, a vida se resume a simplesmente existir (com uma pitada de não saber que, de fato, se existe) ou a questionar o mundo, buscando uma verdade explosiva e plena?
– Por Sté Spengler
Nástienka, de Fiodor Dostoiévski em: Noites Brancas
Nástienka é uma personagem de Noites Brancas, do escritor Dostoiévski. O protagonista Sonhador a conhece e cria um amor platônico por ela. Porém, mais do que isso, Nástienka aponta para as imposições da vida, as quais não podem ser ignoradas, mas, ao mesmo tempo, nos diz que é preciso sonhar. Ela é jovem, ingênua e também sonhadora, que fica à espera de um prometido amor durante quatro noites. Nástienhka é o símbolo da discussão sobre até que ponto as pessoas podem se esconder através de seus sonhos, para evitar o sofrimento. Mostra a contradição entre a vida real vazia e as suas paixões. Nástienhka é uma mulher, com beleza e imperfeições como a vida, assinalando que todos nós somos o protagonista Sonhador: podemos encarar a vida ou virar o rosto em repúdio, mas nunca podemos negar sua pungente existência.
– Por Marcelo Vinicius
Fraülein Elza, de Mário de Andrade em: Amar, Verbo Intrasitivo
A alma feminina desnudada sem pudor e de modo sutilmente elegante pelas mãos do intelectual Mário de Andrade. Fraülein Elza, um misto de muitas mulheres em apenas uma única. A governanta recém-contratada pelo patriarca da família Souza Costa, com o propósito não apenas de cuidar da manutenção da casa e das crianças. No acordo, discretamente, pré-estabelecido por Souza Costa, seria a “professora do amor” de Carlos, seu filho mais velho, um rapazinho a quem Fraülein conduzirá em seu florescer sexual — fazendo-o um homem. Elza, no entanto, não é apresentada como uma prostituta. Ao menos não no sentido pejorativo da palavra. Ela possui modos refinados, é observadora e inteligente; e sua vocação não a torna uma mulher de traços ou postura explicitamente erotizados, porém livre e independente. Elza é a personificação de um projeto feminino desvinculado das utopias de sumo conservadoras da “tradicional família brasileira” — de uma ousadia com classe. Embora Fraülein Elza seja de origem alemã, sem dúvida, é uma das personagens mais emblemáticas, senão uma das mais importantes da literatura brasileira, depois de Capitu. A protagonista do primeiro grande romance do modernismo brasileiro — influenciada pela psicologia freudiana — nos ensina que Amar é um verbo intransitivo.
– Por Márwio Câmara
Úrsula Iguarán, de Gabriel Garcia Márquez em: Cem anos de solidão
Úrsula Iguarán é a chefe da casa dos Buendía em Cem anos de solidão, romance de quinhentas páginas e sete gerações de Gabriel García Márquez. Úrsula é a viga mestra de sua família e sua cidade. Úrsula é (e sempre será) a *multimulher*. Úrsula é forte, pragmática, inseparável de suas convicções; é descrita como “ativa, pequena, severa, mulher de nervos inquebráveis, a quem em nenhum momento de sua vida ouviu cantar, parecendo estar em todas as partes desde o amanhecer até muito adiantada a noite.” Úrsula cuidou de todos mesmo além da sepultura e até o leitor mais distraído ao terminar o romance percebe que foi Úrsula quem manteve Macondo de pé. Se Cem anos de solidão pode ser lido como metáfora para a história da América Latina, Úrsula é então a mãe metafórica, a mãe de todos, a mãe sulamericana platônica, a mãe de todas as mães.
– Por Ygor Speranza